sábado, 29 de março de 2008

Deserto Particular (Cântico das Memórias Falecidas)


Eu vi a chuva cair,
Senti o barulho de cada gota,
Tocar na minha face exposta,
Como asteróides planando na minha pele.

Não era dia,
Não era noite,
Simplesmente a chuva caia sorrateiramente pelo chão,
Não era alívio e nem punição,
Não sentia nada,
Nem sede, nem frio,
Tampouco calor ou dor.

A chuva deslizava entre a grama,
Transformando o solo em lama,
Não desejava e nem mais podia,
Sair deste lugar,
Não contemplava a paisagem molhada,
Observava apenas ao longe,
Como um cemitério sem corpos,
Numa grande vala-comum sem cruzes.

Quando o vazio apoderou-se da minha alma,
Sentia um alívio sem explicação,
Não era bom,
Não era mau,
Na verdade, não era nada.


Todo meu orgulho imbecil,
Não me valeu um único punhado de esperança,
Hoje estou posto dentro de um sarcófago,
Não sei quem sou agora,
Talvez nunca tenha sido nada,
Nunca soube ao certo quem sou,
Além de mera ilusão.

Quando a chuva caia sobre minha face,
Percebi que ninguém estava ao meu redor,
Talvez nunca tenha percebido,
Que jamais teve alguém ao meu redor,
Nunca fiz nada que pudesse me orgulhar,
Nunca escrevi um livro de memória,
E alienado como sempre fui,
Talvez não tenha ocorrido nada de relevante para rascunhar,
Não sinto meu corpo,
Não latejam minhas feridas,
Não diferencio meu sangue da água da chuva,
Não sei quais vermes vêm-me patrulhar.

Não tive projetos que pudessem orgulhar meus sucessores,
Nunca pensei nada além do umbigo,
Minha tenacidade sempre foi líquida,
Não fui nada,
Além de carne motora,
E agora, sou mais nada ainda.

A cabeça entulhada de bobagens,
A vida passou...
Nunca cheguei realmente a conhecê-la,
Piedade ou castigo?
Fiquei órfão de tudo.

Não deixo nada para ninguém,
Ninguém precisará de meu deserto particular,
Nunca tive vontade própria,
Sequer tive minha própria alma,
Fiz tudo o que disseram ser bom para mim,
Não realizei nada que fosse realmente verdadeiro,
Nunca descobri o tal Amor,
Nunca depositei esperanças em alguma coisa,
Nunca me permitir sentir nada,
Nunca deixei ninguém tocar na minha derme,
O egoísmo se tornou parte inalienável de minhas incipientes virtudes,
A saudade sufocada pelo travesseiro,
Não sei o que se passou com a minha vida,
Além de ser absolutamente um grande nada,
Exceto algum rancor como companhia.

Não vivi, fui conduzido.
Não caminhei, fui transportado.
Não freei, fui embalado.
Uns disseram que a vida é boa,
Outros juraram que a vida é má,
Nunca soube ao certo,
Nunca cheguei a conhecê-la de perto,
Apenas ouvir cegamente a falar.

Hoje, entre a terra que lentamente galga me consumindo,
E a chuva que inunda tudo ao meu redor,
Parte diante dos meus olhos,
Tudo o que sempre deixei seguir,
Sem me incomodar com suas conseqüências,
Nada sei e nada quis saber,
No fim da linha,
O que preenchem minhas lacunas,
Apenas derivam de água e barro.

Ontem


Ontem,
Eu quase alvejei
Na autenticidade da verdade...


Ontem,
Eu quase sorri
Sem aglutinar o coração...


Ontem,
Eu quase pensei
Que tudo não poderia ser em vão...


Ontem,
Eu quase desisti
De consolar a tristeza sem cura...


Ontem,
Eu quase confiei
Na imortalidade da Paixão...


Ontem,
Eu quase sonhei
Na validade da generosidade e dedicação...


Ontem,
Meu coração era muito maior do que me pude dispor,
Tudo não durou mais do que ontem,
Nada era mais do que alucinações dos enfermos,
Cânticos de fugaz alcance...



Ontem,
Eu quase acreditei

Que poderia ser feliz!...

segunda-feira, 24 de março de 2008

Insônia


Acordo tão devagar,
A noite que não surgiram os sonhos,
A manhã clareia entre feridas e fendas da janela.


O pensamento transita tão distante,
Quero estar atado aos seus sentidos,
Pousar sobre as nuvens tão distraídas,
Atravessar pontes e avenidas,
Correr nas ruas entre carros amotinados e saltar faróis,
Tropeçando em pedestres e corpos residindo em calçadas,
Driblar cada cão e gato escondido nos sacos de lixo,
Evitar pisar em tantos ratos donos da cidade,
Escalar todos os muros de contenção,
Após pular cada lance de escada,
Até o parapeito de sua janela.


Provar o sabor,
Quanta espera!
Diluindo meu senso,
Angustiando a paciência.


Lábios fugitivos,
De um lado para outro,
A cama vazia é um autômato sem nexo.
Aposentei o travesseiro e cobertor foi se abrigar no chão,
Os olhos ardem diante de tanta luz fosca,
Derrubo o despertador,
Quebro um copo de vidro,
Os estilhaços pelo chão da casa,
São almofadas indigestas que atormentam os dias,
Os livros espalhados pelo quarto,
As idéias que tomam férias,
A crueldade do reflexo no espelho,
O sono que nunca chega,
O cintilar dos seus olhos que não surgem,
O desejo suprimido de todas as formas,
E lá vem aquela eterna indagação:
Por que diabos não consigo lhe esquecer?

Será amor?
Será humor?
Será rancor?
Será tortura?
Será o benedito?


O Sol se põem a fixar no alto dos prédios,
A luz invade o quarto sem pedir alvará,
O leito ainda continua vazio,
Com meu sorriso insólito,
Pouco tenho a fazer...
E a insônia refaz sua velha rotina.


Jaz uma noite,

Jazem duas noites, muitas noites...
Insônia, insônia... Ou devo-lhe chamar agonia?