domingo, 27 de abril de 2008

Arritmia (Balada dos cães vazios)


Ladram cães que perambulam pelas ruas,
A procura de qualquer pedaço bolorento de pão,
Rosnam insaciavelmente acelerando o grito,
A fome que maltrata os órgãos internos.


Derrubam latas e rasgam sacos de lixo,
Espalham vestígios por toda a rua,
Uma trilha de restos de esquecimentos e cheiro desigual,
Misturam-se com a chuva que abate sem cessar.


Em busca de abrigo menos úmido,
Alguns cães adentram embaixo de árvores desfolhadas,
Outros fazem companhia aos pneus velhos,
Nenhum segue adiante com tanta vala escorrendo água suja.


As horas correm e a chuva diminui,
Gotas se vaporam e o ar se torna menos rarefeito,
Uma brisa fria leva um mormaço de mal-estar,
Agora, calmamente os cães podem voltar a sua erma rotina.


Moribundos, uns retornam a latir,
Outros emitem um ruído como se estivesse exalando uma inexprimível dor,
De abandono, frio ou solidão,
Na desertificação dos dias insalubres e a morte como certeza inexorável.


Entre homens e cães cambaleantes,
No isolamento dos espaços vazios,
Arritmia insana de sorrisos histriônicos e alucinados,
A pulsão de morte que suborna a vida.


O recalque mal disfarçado que impede o toque,
O olhar perdido que ladra como os mesmos velhos cães,
A angústia reinante no âmago de um coração partido,
Homens e cães uivando insossos sem destino.


O vazio inunda as noites frágeis e desamparadas,
E segue a derrubada inconstante das latas e sacos de dejetos,
Vidros estilhaçados se multiplicam no curso da calçada,
Homens e cães sentenciados num mundo preso em liberdade.

sábado, 26 de abril de 2008

Cântico das horas suprimidas



No momento crítico de cada ponteiro,
Desliza perfilado o cair das horas,
O barulho ensurdecedor das engrenagens,
Assassina cada segundo ultrapassado.


Inexorável, o Tempo se dilui,
E se revitaliza lentamente a cada ciclo,
Noites e dias se transformam em única passagem,
A certeza incompleta de cada ritmo.


Quando os olhos se fecham abruptamente,
Rezando para que flutue com brevidade,
O Tempo não passa de uma quintessência tão inútil!
Os ponteiros rabiscam os dias com aspereza e secura.


Com giz ou lápis sem cor,
O Tempo delineia e corrói as almas com tamanha devassidão,
Perfura cada canto inóspito do labirinto de nossos anseios,
Evacua lentamente cada miligrama de ódio e amor fervida na memória.


Na distância sentida pelos ponteiros,
Permanece o percurso inexato da insegurança e desespero,
Eqüidistante entre a vida e os fantasmas,
Fomentamos a sina perversa da rotina de recalcada dor.


Na derradeira jornada do Tempo,
Tudo é tão longe e instável,
Tudo é tão opaco e hermético,
Os raros sorrisos tão sinceros são levados pelo vendaval.


Repetidamente os ponteiros sobrevivem prevalecendo sobre o caos,
Na queda petrificada diante da lama e o asfalto,
Estilhaços de gotas d´água iluminam olhos tão cansados,
Os ponteiros se separam e o Tempo fenece sem Paz.


Existem momentos na constrição do amor,
E outras possibilidades para não aviltar o amor,
O Tempo pode maturar um pragmático coração,
Ou destruir cada semente plantada em vão.


A guerra não levanta os mortos,
No campo de batalha espalhado de cadáveres soltos,
O Tempo é como a brisa que gela e carrega tantas agruras,
A discórdia de cada horizonte é apaziguada com o manto temporal.


No Tempo das preces seladas com olhos lacrados e mãos atadas,
Uma gota de lágrima esparge com leveza singular sobre o crucifixo,
Com a boca levemente trêmula no leito de morte,
Nada passa imune ao castigo angustiante das horas.


No dia que o Tempo suprimir meus dias,
Não quero nada além do que possa merecer,
Sem dor ou fel a rolar de alguns minguados pares de olhos,
E que possa reservar um bom leito em qualquer reino de sombras errantes.

domingo, 20 de abril de 2008

Folhas Mortas


Na noite escura e densidade sem igual,
Onde foram roubadas as luzes de todos os postes,
Não havia crucifixo, início ou fim,
Tudo se reduziria a um eclipse existencial.


Um grande martírio pulsando,
Em veias quase obstruídas de tanto torpor,
Sangue coagulando de expectativa (ir)racional,
O caminho de tão pesado gangrena lentamente.


Não há mar ou córrego, apenas areia,
Apenas vestígios dos passos tangidos,
O percurso curvilíneo é cheio de riscos e sabotagens,
Toda certeza provisória é tão minguadamente inútil!


Das pontes saltam madeiras despedaçadas,
Passarelas já não existem mais,
Muitas árvores apodrecidas ao chão,
Espelhando um vazio intenso de folhas mortas.


Em meio a tanta aspereza dolorida,
Traduzo em angústia velada minhas palavras,
Não sou o Salvador ou mártir dos oprimidos que selam os lábios,
E tampouco vim para clamar dissabores ou atear fósforo aceso em nitroglicerina.


Ainda não roubaram com eficiência a minha fé,
Apenas calejaram meus pés,
Não vim pregar vagamente na noite entorpecida,
Só há muralhas soturnas para o alienado abrigo da ilusória segurança.


Caminho tateando todo o percurso,
Seres alados vociferam fogo inconstante,
O chão permanece negro e cheirando a enxofre como um imenso pântano,
Estou atado à discórdia inexata do silêncio ensurdecido.


Ouço o zumbido lançado por algumas zarabatanas,
Pequenas pontas de veneno passam rente ao meu corpo,
Às vezes tropeço e minha face mergulha em folhas podres esparsas,
E o suor frio e trêmulo congela a ponta dos dedos.


Ergo meu corpo e volto a caminhar,
Se a estrada tem algum fim,
Ainda não vejo sua luz,
Porém nenhum demônio tem o poder de trancar todas as portas.


Com tanto trabalho a ser feito impregnado de desconforto fordista,
Uma hora ou outra quando os ponteiros se cruzarem,
Encontrarei alguma passagem desguarnecida,
Minha fé não será pulverizada.


Dobro meus joelhos,
E uno minhas mãos,
Balbucio uma pequena prece,
Levanto novamente e caminho.


Cadáveres, fantasmas e agruras do inconsciente ao redor,
Não cederei à tentação imediata e vulgar,
Ceder meu corpo para o batismo no campo repleto de folhas mortas,
Jamais sucumbir aos risos histriônicos dos palhaços da vitrine.


Sigo...
Sigo profanando túmulos do rancor,
Sigo a iluminação e os lábios úmidos que vão além das nuvens,
Sigo seja lá qual for à direção,
Sigo com a profundidade das cicatrizes expostas pelo corpo,
Sigo com a alma tão estável feito flâmula ao vento,
Sigo o caminho que leva à redenção ou ao abismo,
Sigo a trilha de folhas mortas,
Sigo sozinho ou não.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Subterfúgio


Entre alguns esparsos trechos de luzes,
Ela andava com pés descalços bem devagar,
Sentia muito frio e dos lábios brotaram pequenas fissuras,
Suas pontas dos dedos estavam enrugadas e disformes,
Suas pequenas mãos gelavam com suor intermitente,
Era só uma criança e tudo era denso e escuro.


Folhagens batiam de relance na sua face,
Caminhava lentamente como quem tem receio de cair,
Já tinha tropeçado um número significativo de vezes,
Nos joelhos estava exposta a geografia em viva carne das suas quedas,
Engolia as lágrimas como um prato de comida,
Era só uma criança e sentia toda a angústia amordaçada de gente grande.


E seguia adiante sem passado ou futuro,
Não sabia ao certo para qual direção,
Nem sabia o que fazia ali,
Tampouco sabia por que merecia severo castigo,
Desabrigada num mundo caótico, hostil e enegrecido,
Era só uma criança e sequer sabia a conjugação do verbo amar.


Com os olhos entreabertos,
Não dormia e sobrevivia nutrindo alguns cochilos,
Os olhos já estavam todos bem vermelhos,
Não fazia nenhuma abertura entre a boca e nenhum som emitia,
Não queria ser surpreendida por nenhuma desafortunada atmosfera,
Era só uma criança e não balbuciava nenhuma palavra de suplício.


Porém tanto cansaço fazia as pernas cambalearem,
E pouco a pouco cedia para o chão,
Abrigou-se ao lado de uma grande árvore,
Deitou-se com as pernas encolhidas presas com as mãos,
Derramou uma lágrima que deslizou todo o rosto,
Era só uma criança e a dor itinerante desembocando entre os lábios.


Lá no fundo da alma,
Sentia-se completamente desamparada,
Mas nunca admitia esta possibilidade,
Imersa numa solidão fria e calcificante,
As cinzas nuvens pouco tinha para lhe oferecer além do atávico medo,
Era só uma criança e lá permaneceu durante o resto da noite.


Com seu franzino corpo exausto e trêmulo,
Não sabia para onde deveria caminhar,
Era madrugada e começou a cair às primeiras gotas de chuva,
As suas vestes logo começaram a se encharcarem,
Uma vida tão cheia de dúvidas e insegurança,
Era só uma criança e as incertezas se tornam palafitas da sobrevivência.


Ela somente ouviu durante toda sua tenra idade,
Que a vida é cheia de obstáculos e dissabores,
Sendo assim buscou petrificar seu coração,
Achando que os olhos e a alma se protegeriam contras as agruras da vida,
Em todos os lugares ela desconfiava de tudo,
Era só uma criança e até diante do espelho a imagem refletida não era visível.


Por toda sua efêmera volta era assistida por uma arquibancada de fantasmas,
Não entendia muita coisa, mas sabia que não estava bem sentir tanto frio,
Por orgulho tolo não recuava e apenas preferia silenciar cada gota de lágrimas,
O ar que respira parecia cada vez mais asfixiante, porém não se importava,
Ignorava os perigosos, fechava os olhos e procurava não pensar em nada,
Era só uma criança e o medo lhe protegia com a severidade que lhe é peculiar.


O refúgio e o silêncio,
E a noite desenrola,
Casta, fria e solitária,
Fazem companhia para os olhos tristes e secos,
Como a ingênua idéia da segurança no idílico subterfúgio blindado,
Era só uma criança e sabia que a vida apenas lhe reservava alguns soluços.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Riscos e Perdas


Existe um corredor de tijolos e pedras,
Desunindo o seu e o meu coração,
Prostrando-nos em mundos distantes e silenciosos,
Um grita e o outro não ouve,
Um se esconde e o outro não acha,
Um se arrisca e o outro se fecha.


Dia e noite descompassadamente regido,
Saltam os olhos e a palma da mão esticada,
Oferecendo um outro mundo distante das pedras,
Escondido entre os vãos dos dedos,
O que faz então seus olhos de insensatez?
Cerrar repentinamente as pálpebras,
Apregoar o amor num vazio com insensível cimento,
E negar a claridade batendo com severidade,
Quanto suor frio gotejando sobe a cansada tez.


Entre riscos e perdas,

Uma muralha afasta a todos,
E um mundo é dividido quando poderia ser único.