domingo, 23 de agosto de 2009

Flores do Ralo


Suspiros centrados e cabeça ao longe,
Aqueles pensamentos não saem da mente,
Um misto de saudade, angústia e delírio,
A manhã que se inicia tão vazia.


Os inimigos se clarificam em surdina,
Rosnam do alto de suas prepotências,
Lá estou a observar as cenas de mesma rotina,
O tempo avança com tanta áspera sutileza.


O Amor que passou,
O corpo que esfriou... Venceu, venceu!...
Erguer a cabeça e olhar ainda fixando o horizonte,
O peito em fé agüenta mais algumas empreitadas.


As palavras são resgatadas na palma da mão,
Rotas de fome assimétrica esboçadas no papel,
Medidas de lembranças e recordações díspares,
Para depois serem rasgadas e esquecidas.


Quando as indagações são ascendentes,
Tornam-se maiores que quaisquer certezas,
É bom se acomodar num leito distante e avulso,
E não deixar que a ansiedade dilacere a razão.


Nada é tão volátil ou pernicioso,
Do que o manejo insensato da memória,
Do que ansiar ou reificar quimeras verdejantes,
No caleidoscópio de sensações flutuantes.


O dia sai da rotina,
Quando nos remetemos a verdades incontidas,
Muitos preferem o silêncio ou a omissão,
Data vênia: não é salutar enganar os próprios olhares diante do espelho!


Para quem tem a cabeça pesando toneladas,
Tantas máculas atiradas em almas inocentes,
Que possa encontrar logo o seu cálice de cicuta,
E deixar logo este mundo menos atormentado.


Alguns gritos ecoaram silenciosos nos muros,
Ninguém para ouvir ou mesmo sentir alguma falta,
Do habitat hostil do coração apenas guarda bons momentos,
E que o resto seja aspirado para dentro do ralo.


Meu caminho é de sal,
Mentiras apenas servem para compor a paisagem,
Formar pedras pontiagudas a cortarem meus pés,
É assim que agem as flores do ralo.

domingo, 16 de agosto de 2009

Linhas Descontínuas


Dos caminhos desta terra,
Tantos passos foram dados na estrada,
Sem saber ao certo qual roteiro a seguir,
Amores, medos, fracassos e bolhas nos pés.


No quilômetro da saudade,
Não há retiro que possa confortar,
Os primeiros raios anunciam um novo dia,
E tudo se ilumina como o ciclo das ondas no mar.


No alto de uma cruz do tamanho de nossas querelas,
Renunciamos a todos os pecados e nos apegamos aos orixás,
Com os pregos trincados da sensação de alguma culpa,
Tantas tolices são empurradas sobre as costas do pecador!


Não há muitas verdades cintilantes no chão da minha pátria,
Há mentiras suficientes para transbordarem numa privada,
O Bem e o Mal se relativizam na mediocridade cotidiana,
A fé é cega e os cortes são profundamente sentidos.


Louvamos com omissão tantas canalhices,
Aplaudimos o generalíssimo consenso,
Sorrimos com a boca banguela para a estupidez,
Acenamos avidamente para a solidão.


Um dia a casa cai,
Noutro dia também,
Acordar e dormir são gestos unívocos,
Os pensamentos nunca cessam realmente.


O barulho de carros e cães invade as ruas,
Freios e algumas buzinas à azucrinarem os viventes,
O silêncio é interrompido sem habeas corpus.
E as reentrâncias do dia renascem.


Uma luz fraca invade o quarto moribundo,
O sono que não se abrigou; agora dissipou de vez,
Num respiro profundo em febre terçã,
E os pés saltam para fora da cama.


No rádio uma canção se mescla com outra,
Um ruído quase intermitente acompanha o ambiente,
Os olhos mapeiam um rosto pálido no espelho,
Realidade e inconsciente são uma construção em amálgama.


As palavras são aniquiladas entre os lábios,
A boca se torna um abrigo desértico,
O frio acompanha os passos pelo corredor,
E seguimos em frente para o mesmo cotidiano.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Espinhos Alados (Injúrias e Fé)




O que não me faz morrer me torna mais forte.
(Friedrich Nietzsche)


*


O mundo não acaba aqui,

O mundo ainda está de pé

(Manoelito Nunes e Dalvan)


*

Acalanto, noite fria e verborrágica,
A lua como um painel do cenário de Dante,
Ruas pobres, vazias e sem almas vigilantes,
Alguns esparsos murmúrios excitam sua própria orquestração.


Aos abutres que sorrateiramente sobrevoam o Céu,
À espreita da carne fresca para se deliciarem,
Dos meus ossos não encontrarão fartura,
Nada deixarei para deleite dos alcoviteiros de Beemot.


Aos abutres que zombam em surdina e copulam com súcubos,
Planejam conspirarem contra tudo que não esteja dentro da “ordem”,
Saciar a bendita sede pelas almas em consternação,
Não esperem contribuição passiva de minhas mãos.


Aos bastardos filhos alados de Gehenna,
Lembrem-se que a noite serve de camuflagem para todos,
Entre patrícios e plebeus todos são irrigados com sangue,
Das minhas artérias não servirão de palco para nenhuma fonte luminosa.


A solidão do silêncio abafado sob o eco de risos dos íncubos,
As mentiras dignas de Belfegor soerguida à sete palmos,
Os olhares insaciáveis dos invasores à espera dos apontamentos de São João,
Nada assume maior importância do que a batalha hercúlea da mera sobrevivência.


Quanto sangue do corpo poderá jorrar?
Quanto músculo exposto é passível de agressão?
A mente pressionada a quase intragável exaustão,
Nas esquinas, os chacais esbugalham seus olhos em alerta.


Oh, Baal! Quantos se embriagam nas bordas do seu cálice?
Quantos grãos de areia deslizarão entre os dedos?
O abrigo provisório no interior do grande vazio,
A cabeça buscando se aprumar diante do maremoto.


Transcorre a lâmina impiedosa e crua dos ponteiros,
Injúria e escárnio: a hora que nunca chega,
É a mesma hora que nunca parte,
O passivo imobilismo toma conta de todo o lugar.


A guerra travada diante das agruras do espelho,
A incerteza presente diante do vôo cego dos arcanjos,
Quanto Mal é fantasiado de sorridentes querubins?
Quantas são as faces de Gehenna?


Quebrem meus ossos e estilhacem meus dentes,
Cortem a carne conforme as profanas veleidades de Asmodeu,
Mas nada poderá extinguir a fonte da Grande Luz do firmamento,
Pois a vontade de reinar será a vitória a ser erguida com o mesmo ímpeto.


Nenhuma injustiça poderá prevalecer para a eternidade,
Aos que doam seus corpos em troca da parca sobrevivência,
Haverão de ser erguer contra a tirania subliminar dos dominadores,
E o alimento será ofertado indistintamente à todos neste globo.


Com o corpo fechado e os olhos cerrados,
Com os lábios lacrados e as costas ungidas a espinhos,
Cedo ou tarde os punhos serão libertos do cativeiro,
E ainda o Amor haverá de superar a epifania das trevas.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Entre Muros


Era noite e o silêncio planava no ar,
Calada, ela se encontrava sentada na calçada,
Olhar fixo e absorto perante o mundo,
Buscou aproximar suas pernas a fim de se aquecer.


Não havia ninguém à volta,
Ninguém que pudesse acolhê-la,
Ninguém que trocasse meras duas palavras,
Ninguém ao menos para enxergar a sua existência.


Começava a chover com grande vilania,
Ventos impiedosos açoitavam o seu rosto,
As lágrimas mesclavam-se com tanta água,
A dor se fazia tinir e a zunir cada vez mais.


Um intenso frio adentrava a sua alma,
A espinha mal sustentava o seu corpo,
As contrações latejavam nas paredes do ventre,
Não havia uma viva alma ao seu redor.


O mundo nunca significou-lhe muita coisa,
Sentia-se esquecida e aviltada por todos,
Renegada pelo que acreditava no amor,
E lá permanecia estática diante de tudo.


O que fazer quando tudo parece está perdido?
Ausência de sentimento e a boca seca de temor,
O sangue contínuo escorrendo entre as pernas,
Além da chuva que encharcava suas vestimentas.


Olhando para o lado, aquela coisa expelida e inerte,
Sem sinal de vida e sendo um mero fardo de ódio,
O significado de sua vida cair em xenofobia e malogro,
Nada foi pedido e aquilo apenas representou a sua ruína.


Ela moveu lentamente aquele corpo,
A coisa se mantinha fria e silenciada,
Aquilo ainda fazia ruído em sua cabeça,
Cadê Deus? Melhor assim, melhor assim...


Não! Nada foi pedido...
De fato, ela nunca o quis,
Tanta agonia por aquilo tudo,
Agora, finalmente ela estava livre... Alívio?


No meio da cidade cercada por muros de indiferença,
Num canto imundo, escuro e sobre um céu que desabava,
Na mais silenciosa das noites e para alívio de todos,
Unidos por um cordão, enfim jaziam ela e seu filho.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Labirintite


Um dia acreditamos que tudo poderá ser possível,
Num universo de grande contentamento,
Acreditamos na eternidade como o semblante de um sorriso de criança,
Que nada poderia estragar qualquer momento.


Tal como as nuvens num incerto céu de tonalidade cinza,
O que era azul-anil se ruborizou,
Até esmaecer num oceano turvo e enegrecido,
Para tanta expectativa, um desânimo latente.


Transcorrendo a rotina plástica dos dias,
Crescer, procriar, vegetar e sucumbir,
Na qualidade de animais pretensamente racionais,
Devastamos, sangramos e nos autocondenamos.


Nossas frustrações são cúmplices da ansiedade,
A história de liberdade sucumbe ao comodismo,
A futilidade reinante absoluta nas esquinas,
Somos aparência, veleidade e arrogância.


O encarceramento do passado,
As condições impostas pelos temores,
Nos bares tantos risos alucinógenos,
Os atalhos desmedidos da fuga de si.


Um dia a criança sorri,
Noutro dia ela passa fome,
Em favelas, becos e guetos imundos,
O outro se revela nas velhas páginas de jornal.


Acumulamos bens e tantas outras quinquilharias,
Materializamos todas as nossas emoções vazias,
Racionalizamos o amor, a volúpia e a insanidade,
Quem sobrevive ao caos humano?


Narinas recheadas de pó e almas fabricantes de fumaça,
Olhos brilhantes vagam pela noite eterna,
A revolução sexual entre vômitos e embriaguez,
Admirável mundo novo da liberdade sem arreio!


O cultivo mercantil em busca de uma patética juventude,
Vovô e vovó num alucinado ritmo à hip-hop,
Rupturas narcíseas, brigas inúteis e samba-solidão,
E ainda há os que só querem saber de culpar os porcos!


A fé é um comércio espúrio de liturgias baratas,
Cafetões de Deus promovem a orgia dionisíaca do dinheiro de desesperados,
Clérigos trocando as Escrituras por qualquer rede pedófila,
Se nem Cristo salva: clamamos máscara, lenço e concordata!

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Águas de Inverno (Dias Insalubres)


A chuva que se fragmenta no céu,

Desaba sem piedade sobre os ombros,

Encharca todas as vestes impunemente,

Resta então um corpo frio e desconsolado.



A chuva que inunda a cidade,

Desliza granizo sobre o alumínio da janela,

Numa artilharia semelhante aos tempos de guerra,

Ao que remete à guerrilha cognitiva de cada dia.



A chuva espalha seus sequiosos caprichos,

Inunda sarjetas e transforma calçadas em rios,

Arrasta tudo o que encara pela frente,

Abate a todos com severidade.



A chuva que precipita sobre nossas cabeças,

Afoga coragem e afaga temores,

Emana sobre bueiros tanta sujeira,

A cidade de impurezas e olhos atormentados.



A chuva que invoca demônios,

Leva-nos ao lar de Gehenna,

A angústia da desolação e incompletude,

A cadeia de acontecimentos profanos e arcaicos.



A chuva que abraça a solidão,

Na atmosfera rarefeita da hostilidade cotidiana,

O conflito presente imerso no inconsciente,

A aspereza dos dias selvagens e insalubres.



A chuva que canta num dia cinza,

Nublado de trevas e silêncio,

A janela fechada sem saída,

O abajur enfeitando a sala sem iluminação.



A chuva indiferente e salobra,

Calada sem compaixão imediata,

Rica de fel, cancro e veneno,

Escorrendo pelos poros das almas em tormenta.



A chuva de águas turvas,

Destila mentiras prosaicas dos opressores,

Que cala anulando os corpos lacrados,

Quem grita a esmo é acorrentado à fogueira.



A chuva que corre como sinos do último aviso,

O Paraíso que fecha suas severas portas de fim da colheita,

Tantas almas desabrigadas à espera da inútil salvação,

Tanta água esbanjada que não purifica a todos.