sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Alice (Os Pecados da Ilusão)




Luz clara em noite de luar,
Ela franzia a testa e mexia seus botões,
Sentia levemente um buraco no estômago,
E fingia que o frio não incomodava a sua espinha.


Tinha tudo que todo mundo sempre desejou em vida,
Pais dedicados, vestidos diversos, mimos abundantes,
A sua beleza era fonte de comentários de tanta gente,
A princesa plebéia que se refugiava num palacete urbano.


Todos cortejavam gratuitamente a bela e intempestiva ninfa,
Sua jovialidade inspirava tantos admiradores e alguns azedumes,
Naturalmente, a inveja era um elemento sempre presente,
Afinal, para cada rosa há um cercado de espinhos.


Apesar dos astutos galanteios, nada ela queria,
Nada também fazia seu coração mudar a pulsação cardíaca,
Tudo era tão fácil, banal e presente à sua mão,
Tudo era feito sem maiores esforços ou tensões.


Por onde ela caminhava com seus pés que não tocavam o solo,
Uma legião de fãs órfã de atenção enchia o seu vasto ego,
Todos queriam desposar a ninfa de grande beleza e fortuna,
Entre bocejos e gracejos artificiais, a morosidade comandava seus dias.


O tempo voou e o tédio ampliou-se consideravelmente,
Ela passava cada dia numa solitude de reclusão e distanciamento,
Preenchia um caderno com alguns rabiscos desconexos,
E sonhava se levada numa manjedoura madrugada.


De mocinha mimada à jovem mulher reticente,
Futura herdeira de um sem número de posses,
“De que lhe servia aquilo tudo se nada tinha?”, rememorava,
Os dias de bonança se transformaram em meditações conflitantes.

Na desperta realidade, dos amigos nenhum era fiel,
Dos pretendentes, nenhum era por paixão,
Da admiração, nenhuma era por devoção,
Dos sorrisos, nenhum era por alegria.


Da jovem de belo futuro, seu presente era inexistente,
Não conhecia o Amor e nem o significado mais popular da felicidade,
Conformava-se com um morno calor dos pais majorado com afagos mecânicos,
Triste vento de bonança: Quem disse que a vida é um eterno conto de fadas?


Resignada, o clímax da limitação chegava ao topo,
Numa enluarada madrugada sem nuvens figurantes no cenário,
Preparou um belíssimo banho quente na reconfortante e florida banheira,
E adentrou na água com um profundo corte em cada um dos singelos pulsos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Almas Desérticas (Réquiem para a Sanidade)




Parcimônia, semblante tenso,
Soluções simplificadas na aurora,
Grito ferido na garganta,
Vida breve soa como piedade.


Cantos balbuciando a esmo pelo nome de alguma divindade,
Recorrer à fé como um copo de clorofórmio,
Tantas vidas que não tiveram sorte,
Tantas candidatas que não se forjaram mães.


Tiros alados rompendo helicópteros,
Polícia bandida reprimindo a ralé,
Soldados do tráfico mortos às dúzias,
Eterna reciclagem de dejetos humanos.


Ao solo infecundo e mal nutrido,
É oferecido o sangue dos desvalidos,
O crucifixo embriagado de desespero,
Deslizam lágrimas ígneas de almas desérticas.


Parabéns, meretrícios econômicos,
Capitalistas carniceiros que sugam o néctar dos viventes,
Não há limites para a insaciável sanha pelo “progresso”,
Vampirizam desvairadamente o mundo a bel-prazer.


Zombam das chagas alheias, malditos abutres,
Alienam a todos com as preces para Lúcifer,
Adestram os desavisados via monopólio da opressão,
E nutrem-se da labirintite dos enjaulados.


Em covas fétidas e rasas,
Em buracos profundos e adornados em sal
Nada foi respeitado no fosso das almas,
Eis o indigesto espetáculo da desgraça haitiana.


Somos tantos, somos poucos,
Inválidos e espoliados na batuta de AK-47 dos colonizadores,
Entre a luxúria camicase e a maldade sem escrúpulos,
Um só mundo de tantas ameaças e privações.


Todas as rimas são banais e insuficientes,
Todas as palavras são fartamente limitadas,
Nada corre com maior esperança do que o insólito eco de resistência,
Não existe a verdade, apenas a história panfletária dos vencedores.


Periferia do mundo, suor dos vencidos,
Planície paradisíaca que esconde becos escuros,
Cintilante, todos os sorrisos lampejam temores,
Casa grande, meu nome é senzala!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Perfídia (Lamento de Carnaval)


Oh, cabrocha de tantos carnavais!
Quem diria que você virou isto aí,
Quem diria que num belo dia,
Você não estaria mais aqui.

Vendaval! Todo ano era você e eu,
Você, minha majestosa rainha, galgando corações na avenida,
E eu de pierrô na ala dos desafortunados foliões,
A platéia louvando a sua indecifrável beleza,
Guardando na retina suas exuberantes exibições.

Quem diria!... Você que um dia,
Marcava o samba a noite inteira até o amanhecer,
Seus beijos eram como acordes encantados no som da cuíca,
Agora, renegou, partiu, sumiu e tudo foi sepultado,
A vila, a vida, o samba, o pandeiro e o seu gaiteiro...

Mentiras previsíveis exaladas do amor provisório?
O calor aprazível dos abraços na brisa da madrugada,
Galhofas perenes no roçar dos corpos em êxtase,
Os risos tímidos plantados como sementes de esperança.

Cabrocha, o amor não sobreviveu? Desalinhou, desalinhou...
A cada encontro meus olhos banhavam de ternura seu ego caprichoso,
De dourado, de dourado até o surgir do novo dia no ritmo do pandeiro.
Cabrocha, quem lhe conheceu tão bem, não reconhece a nova esfinge...
Parafraseando a obviedade: Não existe mais você!
Noutra cabrocha se transformou artificialmente,
Renegando aquele que sempre a cortejou...

A saudade sufoca-me de tristeza, de desencantamento, de agonia...
Cabrocha maldosa, para qual ilusão efêmera ofertou seus braços?
Neste carnaval não consegui sambar como outrora,
Toda a nossa escola chorou, chorou...
De infelicidade, de desalento, de perplexidade.
Fugir, fugir... Fugir, por quê?
Se tudo o que ama, todo mundo vê?

Ensaio geral, pavilhão embrulhado em lágrimas,
Saudade atroz, agora em frente ao seu portão,
Passo sem medir meus passos,
Lentamente, como quem em vão procura lhe dizer:
“- Sobra amor, sobra espaço,
No meu barraco, na minha alma em descompasso.”

Pare de viver na fantasia!
A realidade não é folia,
Para o mundo, o seu reino é de apenas um único dia,
Do meu coração, a eternidade do asfalto que você judia,
Não me deixe viver no ostracismo da melancolia,
Engolindo minha dignidade, escrevo esta laboriosa melodia,
Na expectativa que retorne para o calor de minha companhia,
A casa cai e sei que irá sentir saudade em algum dia,
(“Mais cedo do que a ingratidão possa imaginar!”, qualquer um diria)
Então, engolirá o orgulho e cansará de tanta apatia,
Logo, me espere na estação da velha ferrovia,
Que irei buscá-la com toda a minha alegria,
Cabrocha, fiz tanto, tanto!... Só você que não via!
Ah, malograda perfídia!

E segue o samba-enredo do nosso deserto:
Quem bate, esquece,
Quem apanha, recorda,
Quem ama, aquece,
Quem mente, falece,
Quem chora, tem sede,
Quem se arrepende, graceja?
Que perdoa, enobrece?
Quebrou a tradição,
Apertou a tristeza desfilando nas esquinas,
Esqueceu, passou, voou...
O bloco do adeus chegou!

Cabrocha de coração diamantino em bruta pedra,
É bom anotar em sua agenda de formigueiro compromisso,
Zombe do Amor somente até o raiar do dia,
As flores da perfídia não sobreviverão,
Após as cinzas da quarta-feira.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Canto de Arlequim No. 2


Ouça a longa história de meus males,
E cure sua dor com minha dor;
Que grandes mágoas podem curar mágoas.
(Camões)



Foi num baile de máscaras onde lhe encontrei,
Festa pagã com mil foliões a brincar no salão,
Alegria e êxtase numa conjunção beatificada,
Estávamos encantados por uma flâmula canção.


Com olhos extáticos, precisava tanto lhe encontrar,
Para rever, para amparar, para reencarnar,
Como serpentinas ao chão, seria tudo miragem de carnaval,
Como cálices secos, mera desilusão para compor meu recital?


Olha a Lua, minha Colombina!
Não tenha medo de falar seus segredos,
Do cantar entregue na escuridão,
Todas as pedras do seu coração.


Colombina, os sonhos são feitos para semear,
E você continua em todo o meu olhar,
A noite foi feita para se conquistar,
De lá de cima, segue a Lua a nos espiar.


Doce, doce é desejar lhe amar,
Devagar, devagar sem cessar,
Desvairadamente febril como um pulsar...
Que ilumina as trevas do meu penar!


Colombina saiba que o amor é também feito de agonia,
Seja no levantar moribundo da noite,
Seja no amanhecer de um verdejante dia,
Pena! Nunca, nunca é somente alegria.


Vejo da janela breve gotas ácidas de chuva,
Águas salobras de um verão sorrateiramente sequioso,
E meu coração é um naufrago abençoado por Poseidon,
Içando em pensamentos a probabilidade do seu amor.


Se a Natureza é cruel, Colombina não fique triste,
Não suporto saber que há tristeza em seus olhos de amêndoas,
A esfinge que encanta não poderá confinar mágoas,
Culpado é este Arlequim que não sabe como lhe fazer feliz!


Vis-à-vis sei que não sou o herói que você espera encontrar,
Meu samba não adentrou na estreita avenida do seu coração,
Colombina saiba que o meu malogrado lamento,
É tudo que este pobre folião consegue ressoar.


Colombina, minha triste sina é peregrinar,
Caminhar, caminhar... Do altar ao pé da cruz,
Para jurar nunca mais outra vez me apaixonar,
Novamente por você, novamente pelo seu olhar!


Mesmo negando, talvez não consiga deixar de procurar,
Como uma nódoa latejante, talvez eu nunca me esqueça de desejar-lhe amar,
Para meu grosso azar, inevitavelmente outro carnaval irá chegar,
Triste sina de ingratidão onde sua imagem não deixará de se apagar.


(Original 1998; Versão 2010)

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Solitude (Canção da Boa Morte)


Era muito tarde e quase não se via nada,
Uma densa neblina encobria os arredores,
Em passos apertados ela caminhava solitária pelas ruelas,
Bastante atenta a tudo que se passava a sua volta.


Bêbados, assassinos, tarados e toxicomaníacos,
Tantos tipinhos desvalidos que não mereceriam qualquer chão,
A noite de esguichos escarlates era o cartão postal do seu ofício,
E nada poderia demovê-la de sua inexorável empreitada.


Ao fundo repentinamente um grito de desespero ecoou,
Na noite onde tudo se amalgama em densa escuridão,
Impossível decifrar os minguados inocentes entre os culpados,
Na indócil tarefa de separar algum trigo de tanto joio apodrecido.


Ao contrário do que muitos diziam em capciosos burburinhos,
Ela se esforçava para não ser tão injusta em suas ações,
Alguns afirmavam que ela era traiçoeira, maldita e covarde,
Todavia, para ela se o Amor era improvável também não queria ser odiada.


Com fome, sede e desprovida de qualquer centavo nos bolsos,
Era preciso começar a rotina e parou no primeiro bar à vista,
Para variar, certo alvoroço emanava do recinto,
Dois caídos ao chão e circunscritos numa poça de sangue.


Com tanta estupidez gratuita, seu trabalho ficava cada vez mais insólito,
Sem entregar os pontos, uma nova tentativa foi adentrar em outro estabelecimento,
Numa tela de Dalí, segue mais uma noite de pura sangria e insanidade,
O ambiente estava com acesso interrompido devido à calejada chacina local.


Quanto lamento no seu peito na execução hermética do relógio,
A crueldade dos homens assombrava a sua consciência,
Tantas guerras e tragédias onde clamavam o seu nome em louvação,
Ela só queria ser lembrada como mais uma honesta trabalhadora braçal.


Freqüentemente caia em turbulentos questionamentos,
Se à hora da aposentadoria era uma inadiável realidade,
Cansada e com uma idade demasiadamente avançada,
Com tanta ociosidade, talvez fosse melhor partir para outro ofício.


Latejantes pensamentos, mas algo intrínseco não fazia cessar sua jornada,
No percurso, ela entrou numa casa cuja porta se encontrava escancarada,
Observou a desordem do lugar e corpos caídos em lacônica paisagem,
Era madrugada, e mais uma família desfeita pela insensatez falta de compaixão.


O dia já iria clarear e seus pés já estavam pavimentados de grossas bolhas,
Por fim uma criança doente deitada num beco fétido e escuro,
Ao observar a secura dos seus lábios, farta de tudo ela decidiu não intervir,
Cabisbaixa e sem olhar para trás, a Morte decidiu voltar para a sua casa.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Cadáveres do Aquário


Mamãe entrará em erupção como o Krakatoa. É importante deixa bem claro que eu não tenho culpa alguma a respeito da insuficiência respiratória dos peixes. Sim, é um problema eminentemente da escala evolutiva e caberia também aos peixes respirarem fora da água. Se o idiota do Joca, meu estúpido vizinho dono de uma horrenda cara de peixe rouba com facilidade o nosso oxigênio, por que os peixes que são muito mais espertos que ele não se arranjam em ambiente seco? Tem outra coisa a se pensar também: o que farei com os cadáveres? Deve ter uma dúzia de corpos no tapete. Conheço mamãe, ela sempre fica uma onça quando aquele tapete fica sujo. Cadáver é sujeira? Tudo bem, de qualquer maneira, mamãe não ficará nada contente com corpos enfeitando o tapete encharcado da sala. Preciso me livrar deles.


No relógio falta menos de meia hora para mamãe chegar. O importante é ficar calmo e deixar que a verdade fale por si. Qual a verdade? Oras, na verdade eu não preciso ser tão sincero. Sou apenas uma criança e assim posso omitir alguns fatos que certamente me comprometerá menos. Outra vez, nestes programas que mamãe adora, ouvi uma mulher na televisão dizendo que ser criança é diminuir suas responsabilidades. É bom se valer disso no momento. Adoro as verdades que passa na televisão. Bom eu acho que é tudo verdade, a televisão não poderia mentir de tal forma que mamãe nunca desgruda daquelas novelas, apesar dos comentários pouco elogiosos de papai. Vamos ver no que pensarei...


Posso dizer que foi uma rebelião frustrada dos peixes do aquário que planejaram às escondidas uma revolução popular dos oprimidos habitantes aquáticos contra a tirania avassaladora dos homens da superfície. Mas que homens da superfície? O aquário é da mamãe. Confesso que mamãe é às vezes muito chata, mas não tão tirana assim. Será que o complexo de Édipo funciona nestas horas? Mas como ainda sou apenas uma criança eu não poderia estar fazendo tais ilações... Bem, estava indo tão bem, mas acho que isto não vai colar muito.


É preciso ser tão convincente quanto verdadeiro. Já sei! Vou dizer que foi tudo culpa do Joca. Este moleque é sempre um desastrado. Pior de tudo é corinthiano e nunca avança sequer três fases seguidas de qualquer jogo bobo do Playstation. Na escola sempre quebra alguma coisa e ele já tropeçou e quebrou um vaso da mamãe. Lembro do tal vaso que vovó comprou num tal Paraguai e não faz muito tempo. Sim é culpado é ele: Joca.


Ufa! Ainda bem que sou esperto e penso em tudo. Joca, Joca, Joca! Quem diria que o cara de peixe aliviará minha barra com mamãe e será o responsável direto pela tragédia do aquário. Putz! Não pode ser... Não sou tão brilhante assim! Lembrei que estamos em período de férias escolares. Joca foi viajar com os seus pais e foi justamente mamãe que foi levá-los à rodoviária. Como ele poderia ter vindo hoje destruir o aquário? Que droga, Joca é tão inútil que nem para me ajudar nestas horas este moleque presta!


O tempo corre tão rápido como o Sonic. Ainda não pensei em nada convincente para justificar a mamãe. Adeus aos games, adeus à minha liberdade tão estimada, adeus às minhas regalias tão fundamentais por uma inteira e interminável semana. Por que a vida é tão cruel com as crianças que são inocentes? Aliás, eu me incluo nesta lista. Ouço o barulho do elevador. Dentro de poucos segundo ela estará aqui da cor do Hellboy e dará minha terrível sentença. Minha carreira de futuro atacante do Flamengo estará em risco com o sumiço que certamente mamãe dará em minha inseparável bola oficial. Puxa, estas bolas redondas aprontam cada uma!


Quando a fúria de mamãe é inevitável, melhor preparar o cenário para suplicar a justa clemência. O jeito é respirar fundo, preparar as lágrimas providenciais e, para tomar coragem, melhor ir encher a cara de Coca-cola.