Espaço dedicado à análise, reflexão e crítica dos enlaces, desarranjos e autofagias do homem (i)material e o desencanto do mundo contemporâneo.
terça-feira, 2 de novembro de 2010
Poema para o Dia de Finados No. 2
Laisse-moi devenir/ L'ombre de ton ombre/ L'ombre de ta main
("Ne me quitte pas", Jacques Brel)
A dor é a ante-sala da loucura,
É a esfinge corrosiva do luto,
É o mais trágico dos afetos,
É a luz que pulsa no gargalo das trevas.
Sob a luz tolhida do exaurido coração,
Lampejos de lembranças de dias horríveis,
A perda inexprimível de entes queridos,
A distância calada de velhos amigos.
O amor atado na cruz,
Os sonhos outrora vencidos,
As lágrimas que nunca findam definitivamente,
A ternura jamais esquecida.
Os dias devastados pela claridade,
Os pássaros cantando envoltos em neblina,
Um entoar acanhado e longe de ser alegre,
E invariáveis noites nunca adormecidas.
Tantas coisas que se desejaria apagar,
Como um imaginário controle remoto sempre a mão,
Escolher o canal que diferencia a boa da má programação:
Quanto engano, quanto devaneio!...
Quando a retina se perde na fresta da janela,
No fosso da ilusão, tudo parece estar como antes,
Cabisbaixo, os olhos são fustigados por lembranças,
A morte parece não estar presente nestas horas.
No estado de luto são desvelados pensamentos a cada momento,
Privando a memória de matar a dor,
Ampliando a angústia repaginada,
A ausência nunca esquecida.
A dor nunca abandona a alma,
Mas vida faz aprender o dever de aparar algumas arestas,
O amor por razões indecifráveis pode cessar a prosseguir,
Os sentimentos guardados são almas velejantes.
Ao sabor do mar,os fantasmas caminham livremente suscitando a angústia,
De tanta indelicada crueldade,
A morte nunca deixa a dor descansar,
Ressuscita a cada lembrança que lateja permanente na memória,
Na madrugada seca e sem o sabor de uma vulgar brisa,
Somente o desgaste do lápis rabiscando sobre papéis em branco,
Recita a canção de mais uma noite,
A morte nunca carrega o sofrimento para a cova.
A dor nunca assassina ou permite-se ser assassinada,
Apenas corrói a alma transformando-a num simples objeto esquálido,
A vida e a dor são irmãs dialéticas e xifópagas,
Por mais que se odeiam uma em relação à outra.
A dor-afeto que tanto pulveriza os olhos,
É o que nutre vagamente os alicerces dos dias,
Na vã tentativa de combater a pulsão mortal,
Com único alento de dar sobrevida ao resto de existência.
Edith Piaf remete-se na intensidade do corte na carne,
“Les feuilles mortes” e“Ne me quite pas” desalinham os olhos cerrados,
São Paulo, Leningrado, Shangri-lá ou Atlântida...
Por onde reencontrar os passos da perda?
O silêncio canibaliza querelas de esperança,
A morte nunca deixa a dor gangrenar,
A dor em viva latência como a seiva deslizando da árvore castigada,
A dor é o fulcro ocular que testemunha o prazer sucumbido.
Cintila uma dor no peito,
Aquela maldita dor no peito!
Sua atrocidade não lesiona os tecidos,
Porém seus caprichos fulminam a alma.
No Dia de Finados,
Invariavelmente chove,
Chuva fina ou temporal,
Porém tudo isto pouco importa neste momento...
O cheiro da terra úmida não desfaz as memórias,
Não deixa desaparecer a presença do coração,
Como lágrimas nutridas de lembranças,
Um polvilhar indigesto de silêncio e saudades.
Quantos mortos foram tragados inutilmente por guerra, peste e fome,
Quantos mortos foram banidos da vida sem piedade,
Quantos corações foram afastados do calor do abraço,
No berço de cada lápide adormece uma estrela chamada saudade.
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