sábado, 26 de setembro de 2009

A Menina na Janela


Por que é que vocês acham impossível crer que Deus ressuscita os mortos?
(Atos 26:8)



O que faz aquela menina na janela,
Que observa rotineiramente através da cortina,
Vulto de passos e automotores que trafegam diante de si,
Toda uma vida além do seu imóvel recinto.


A janela é o quadrilátero luminescente do seu mundo,
A luz que clarifica e dá algum alento à sua existência,
Vento que adentra a sala e sopra com suavidade seus cabelos,
A alegria e a tristeza estampadas sutilmente em seu semblante.


A menina solitária feita de refém das articulações mecânicas,
Longos fios sobre sua cabeça e um corpo de arquitetura franzina,
Olhar fixo e profundo que circula pelo infinito vazio,
Mãos atadas nas esteiras do movimento circulante.


Um dia sentia a brisa sobre a areia dos seus pés,
Uma pequena corrida na orla onde se podia abraçar o mar,
Passos que se erguiam para a leveza de sonhos e liberdade,
Conduzidos por uma satisfação sem destino certo.


Sentada, seu corpo se fragilizou bem longe da plenitude dos pássaros,
Tamanha sensibilidade que foi roubada do seu íntimo,
Grãos de areia agora não pode mais sentir como outrora,
Tocar o chão se tornou a maior de todas as suas vontades.


Aquela luz proeminente da janela dizia-lhe tanto,
Um sopro de liberdade enchia seu peito de um comedido alívio,
A textura da irradiação solar sobre seu rosto como uma benção divina,
No alto da parede reluz um crucifixo e a sensação que precisa estar viva.


Não se sabe quanta estupidez carrega a humanidade,
Muitos seres mesquinhos que ceifam a vida inocente,
Talvez o Mal seja o espectro imaterial da dor,
Quem tirou os seus passos ainda pisa livre em solo.


Não há mais que sustente uma lacuna,
Reaprender a viver é o significado da Fênix,
O sorriso discreto ainda pulsa no canto dos lábios.
É a sutura que fecha sua cicatrizes terminais.


Justa ou injusta, a vida é uma janela enigmática,
Da cadeira, ela está sempre pronta a decifrar,
Quem tem a seiva da vida provoca a dor alheia,
E dor é tudo que a menina não deseja ver pela janela.


A vida passa na janela e no roteiro pragmático do relógio,
Ela não desiste e faz das lágrimas seu colírio,
Reviver a percepção do colorido diante do cinza,
Aguardando para que seus pés possam novamente sentir o chão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um em Dois


No tempo onde tudo era possível,
Você caminhava descalça pelo jardim,
Sentia a suavidade do aroma das flores,
E a verdade sobre a vida era de via única.


Não havia desentendimentos ou desconfianças,
Sem o cultivo de olhos fechados ou mãos cruzadas,
Sobravam braços abertos e sorrisos equatoriais,
O Amor e o desejo eram elementos ternos e únicos.


Acenávamos com vitalidade para a Paz,
O calor dos afagos e os olhos brilhantes,
Mãos táteis sobre a aquecida superfície da pele,
Sinais exalados de longa duração e profundo apego.


Como nada é tão eterno como tanto ansiamos,
Então veio a guerra, a fome e o desvencilhamento,
Os corpos secaram com a frieza dos sentimentos,
A sintonia desconexa entrou em agressiva arritmia.


Os sinais passaram a não serem mais ouvidos,
A atenção foi pouco solicitada e até mesmo desprezada,
O desconhecimento mútuo foi se avolumando,
Em cacos, os pratos se estilhaçaram ao chão.


As palavras ventilavam como bolas de fogo,
Queimando nossas mãos e criando nódulos,
A esmaecida razão foi posta na geladeira,
A injúria se transformou na nova ordem.


A partilha se emudeceu em desabrigo e solidão,
Os vocábulos castrados se polvilharam em indiferença,
A cegueira incandescente conduziu a união para o cárcere,
O campo de centeio se transformou num deserto alheio.


Como desconhecidos para os olhares em trevas,
Devastados pelo rompimento de promessas primárias,
Cada um por si e o maremoto afixado na jugular de todos,
Blasfêmias ceifando o que outrora encobriam os corpos.


Distantes, os frágeis castelos não resistiram aos ciclos da maré,
Talvez a correnteza em algum momento possa novamente unir,
Amenizar o lastro perdido do desejo silenciado e incólume,
Quem garante a sobriedade da Paz?


Um dia o céu é tingido de um celestial azul,
Outrora é repaginado de um fosco vermelho,
Para finalmente ser desbotado num poluído cinza,
Quais são as cores que você sempre quis?

sábado, 19 de setembro de 2009

Agorafobia (Esperando a Primavera)


Aprendi com a primavera a deixar-me cortar.
E a voltar sempre inteira.

(Cecília Meirelles)



Qual a cor dos seus olhos sem abrigo,
Quando fechados com zelo tão profundo?
Qual a dimensão exata do seu umbigo,
Quando dá uma volta inteira no mundo?


Quais são as noites que anseia se banhar após o amor sem desejo,
Desinfetar o seu corpo desnudo para não mais voltar?
Quais os lábios que são desprezados com a mentira do seu beijo,
Se a sua boca é um insensato invólucro adiabático a reinar?


O impávido lacre de indomável fortaleza,
São paródias irrisórias de papel fosco e rimas fáceis,
Cante seu grito de lamento como se fosse um uivo de guerra,
Faça de suas lágrimas uma flâmula de resistência na alcova.


Veja que o mundo não acabou com a sua ausência,
Os dentes que restaram ainda estão no lugar,
O sangue também circula nas artérias e segue jorrando nas veias,
Apesar de que os pratos e talhares ainda estão sobre a toalha da mesa.


A voz rouca é pouca,
A saliva salina é fel,
A pedra atirada é ira,
O fluído derramado é liberdade?


A mentira pregada nas sensações cutâneas,
Outrora perdida, talvez algum cálice aflore a libido...
Quem sabe alimente a dança das pernas entrelaçadas ao relento,
A batalha dionisíaca travada em campo aberto na cidadela de Sodoma.


Não leve suas reses para pastarem nas gramíneas da luxúria,
Não ouse fingir a soberana e debochada emancipação,
Lembre-se que os olhos denunciam logo na primeira clivagem,
Não resista a si mesmo: pule!


Deixe a cabeça pender em queda livre,
Amplifique a abertura de suas entranhas,
Grite com o silêncio dos lençóis úmidos de suor,
A culpa é sempre o enfermo palco do inconsciente.


Mire na liberdade dos pássaros no horizonte,
Atire seu corpo sem viés através da janela,
Abrace tudo aquilo que não pode ser alcançado,
Flutue no limítrofe espaço entre o imaginário e o impossível.


Enlouqueça sem desejar recuperar a via da sanidade,
Sinta a acidez do desapego e a volúpia da devoção,
Incinere lentamente as ilusões da caixa de Pandora,
Renasça da mentira de tudo aquilo que foi batizado em vida.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Vermelho (Rubro Rito)


A mulher que sangra,
Segue mais um ciclo que se fecha,
Para recomeçar invariavelmente um novo percurso,
Até nas próximas semanas encontrar o mesmo precipício.


O ciclo natural dos ritmos sensoriais,
As indigestas dores indesejadas de ocasião,
A inevitável pulsão de vida em berço de morte,
Canalizada num horizonte de hostis reentrâncias.


A chave milimetricamente fora do seu devido lugar,
O copo em desuso fora da pia,
O lixo inoportuno caído ao chão,
Tudo é um motivo para um temporal imediato de ódio.


Todos são culpados no recinto do lar,
Todos são inocentes no recinto do coração,
A cefaléia cortante que atormenta o dia à espera da alcova,
Ninguém entende, ninguém precisa entender...


Sob a temperatura da superfície solar,
Uma atmosfera sufocante causa claustrofobia,
Oxigênio! A ansiedade por um ar puro e fresco,
Deus! Por que carregar esta cruz?


Não!... Não chegue perto!
Deixe o corpo na impossível Paz!
Sirenes agressivas dominam os tímpanos,
O que é que estou fazendo aqui?


Picos mordazes de profundo estresse,
Suor frio e algumas preocupações tolas na cabeça,
Cansaço! Quem é que entende isto afinal?
Respirar! Quisera se fechar com um lacre em si...


Destruir o que não se pertence,
Estilhaçar todo o mal com as próprias mãos,
Desce o ciclo lisérgico da normalidade,
Renasce a aura da culpa e uma gota de lágrima.


Ama-se, ama-se demais,
Odeia-se, odeia-se igualmente demais,
Caminho bom, caminho mau,
Ciclo que se fecha e se resgata.


Vida ou sofrimento?
A eternidade da mulher que sangra,
Seja no corpo, seja na alma,
Ciclo que é vida também se aglutina em tormenta.


Ar úmido! Óvulo de vida,
Ar seco! Óvulo de dor,
Caminhos de Paz, prazer e angústia,
Vida e morte num elo dicotômico.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Porto Triste (Um Rio na Praça)



Aparente cidade de tranqüila serenidade,
Abrigo de grande história narcísea,
Palco que ostenta as resistências de um orgulho,
Vaidade sibilante do povo gaúcho.


Cidade de antigos casarões e desabrigados sem ocupação,
Envelhecida pelo tempo corrente e desemprego fatídico,
Hoje lar de um comércio varejista e mercadores ambulantes,
Multidão de transeuntes trafegando a esmo.


Passeio tranqüilo de um ponto a outro,
Entrando e saindo de uma loja qualquer,
Nada tão relevante para se adquirido,
Apenas uma chuva intermitente encharcando os sapatos.


De repente, num raio de poucos metros,
O que seria de tão interessante e desprendesse tantos olhares,
A eclosão de um punhado massivo de transeuntes,
Se postando num quase círculo ao lado da Praça.


Bochichos e vozes amiúdes se avolumavam na atmosfera,
Uma, duas, três viaturas da ordem pública fazendo sentinela,
O que será? O que seria de tão interessante na cidade alegre?
Um mendigo, um acidente ou um inusitado espetáculo?


No lastro do “efeito manada” com recortes de um teatro de hipnose,
Tentativa de aproximação entre tantas outras cabeças,
Ainda não dá para ver! – maldita natureza bisbilhoteira humana!
Assim era digno de prefixação: a curiosidade assassinou o gato?


Enfim, a resistência é recompensada,
Uma lacuna se abre diante da multidão,
Mas o que é isto afinal?
O rio Guaíba entrincheirado em plena praça?


Acompanho o curso do filete rubro na calçada,
Um corpo caído sobre uma poça de água suja,
Um cobertor velho encobrindo sua cabeça e tronco,
Ainda não pensei na tétrica tradução para a dantesca cena.


Vozes moribundas vagavam pelos cantos:
“Era ladrão?”, “É ladrão!”,
Um bradava: “Tá morto, era ladrão!”,
Outro sentenciava: “Quem deve, paga!”.

Quem viu? Briga fortuita ou assassinato de aluguel?Afinal, quem era?
Questões que se umedeciam na chuva impiedosa.
“Não vi, não sei, não conheço...”, palavras que repercutia no vazio.
Dezenas de pessoas e todas sem olhos.


Ao lado da praça de um rico folclore,
Na aproximação no majestoso Mercado Público,
Jazia um desconhecido cercado de ecos insólitos:
“Tiro na cabeça! Bala no presunto!”


Na típica insanidade dos viventes da “cidadania do bem”,
A barbárie não escolhe fachada e não encontra perdão,
Em São Paulo, Rio de Janeiro ou na velha Porto Alegre,
A indiferença é a marca da extrema maldade.


Quanto vale a vida senão um filete do Rio Guaíba,
Da janela tudo são pontos de luzes e ao lado uma turbulenta Paz.
Aí embaixo somos nada,
Aqui em cima apenas somos tudo o que somos.



(Vôo JJ-3501, Porto Alegre-São Paulo, 12 de setembro de 2009, 20h30min)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Letargia (Amnésia Cotidiana)


Sob o luar inteiramente sem propósito,
O manto negro que galvaniza a cidade,
Fechando mais um novo dia de velha rotina,
O corpo esperando com avidez o seu descanso.


Os dias transitam nas engrenagens dos sentidos,
Um idêntico mesmíssimo recorte é assimilado,
Com ou sem cores, tudo se repete milimetricamente,
Num cotidiano sem surpresas ou transfusões sanguíneas.


As linhas são anestesiadas com o mesmo script,
Sem demora, sem outrora, sem inquietações,
Tudo da mesma forma que dantes,
A circular viagem diária dos ponteiros.


Quem sou eu?
Pouco importa para a vida que segue sem vestígios,
Os rastos são tão bem apagados para qualquer conhecimento,
Lápis sem grafite no livro de páginas em branco.


Seguir o que está dentro do cercado,
A liberdade com perímetro limitado,
Nada lá fora parece ser interessante,
Subterfúgios para que o mundo se exploda!


Egoísmos, fragmentação e fragilidades,
A cabeça baixa com uma sinfonia zunindo,
A busca desesperada pelo lento repouso da pressão,
As paredes do mundo se estreitam lentamente.


Claustrofobia na cidade da solitude indiferença,
Tic-tac: segue o relógio a avisar do tempo que nunca finda,
Tic-tac: hora para dormir, hora para acordar,
O refúgio do semblante no espelho é a única pátria.


Consumo além do limite do cartão de crédito,
Comprar o que se deseja e o que nem se imagina,
O saciar insaciável das veleidades e do status a qualquer preço,
O brilho do farol e o gozo radiante na agonia da cidade-zumbi.


Viva o Grande Nada: o mundo-umbigo decreta feriado,
Enfim, eis a felicidade do “meu” dia de ser feliz!
Uma aura encantada para satisfazer caprichos e delírios avulsos,
Até o Amor se despedaçar sobre o travesseiro.


Rotinas cotidianas movidas a uma maré de lágrimas ocultas,
A cidade-pálida que ilumina, ilude e adoece,
A letargia que toma forma e promove a sobrevivência,
Quem se importa?