quinta-feira, 10 de junho de 2010

Entropia Sentimental


Knowing me, knowing you
There is nothing we can do

(“Knowning me, knowing you”, Benny Andersson, Stig Anderson & Björn Ulvaeus, 1976)




Desde o dia que você partiu,
O calendário despedaçado não soube retornar a rotina,
É preciso dizer que muita coisa ficou perdida sem aquele perfume,
Desprovida da luminescência e delicadeza do seu sorriso.


Desde o dia que a porta se fechou,
Um filete desatento de lágrima percorreu o coração,
Perdidas, sem saber direito a localização do curso do rio,
Algumas gotas chegaram a se estilhaçar ao chão.


Desde o dia que suas mãos foram retiradas dos meus dedos,
Os acalentadores sonhos migraram de destino,
A insônia povoou o campo das antigas certezas,
Os olhos ficaram turvos ao longo de tantas noites.


Desde o dia que nada foi dito,
Pouca coisa mudou de lugar,
O meu coração ainda pulsa em vão,
Ouço a chuva irascível batendo na janela.


Desde o dia que os lábios negaram o beijo,
Tenho mantido a respiração mais profunda,
Às vezes tudo parece ser uma vilania de Lúcifer,
Quando acordo a realidade é um indócil cenário.


Desde o dia que o riso desinflou da face,
As palavras de juramento foram parar no sótão,
Escondidas entre teias de aranhas e silêncio punitivo,
Os papéis avulsos são espalhados com versos borrados.


Desde o dia que seus olhos se fecharam,
Perdi a vontade de contar as estrelas,
Tampouco saber a distância da estrada,
Sinto que a solidão não é uma bagagem à toa.


Desde o dia que sentir sua alma tão distante,
Como o afago do deserto que nos abraça agora,
Questiono a cada vã madrugada a validade da Paixão,
Será que o pragmatismo é sempre o vencedor?


Desde o dia que os meus passos mudaram de lugar,
Confessar é sempre árduo, mas foi tão difícil levantar a cabeça,
A brisa gelada que teima bater no parapeito da janela,
É a navalha soturna que açoita a face.


Desde o dia que não mais toquei no seu corpo,
É como se o Amor pudesse perder toda a graça,
Aquela sintonia torrente e unívoca se sublimou no ar,
Minhas mãos se tornaram órfãs da maciez de sua pele.


Desde o dia que você renegou ao meu último apelo,
Saiba que sobrevivi a uma maré de mágoas que inundava o quarto,
Difícil é dizer se há castigo mais vil no mundo,
Que é conviver com a entropia sentimental.


Desde o dia que você não mais voltou eu aprendi a perdoar,
Minimizar seus erros e abdicar dos meus desejos,
Sem questionar o que seria melhor para nosso destino,
Se um de nós teve que partir, então que seja assim...


Desde o dia que o Amor se esvaiu,
A verdade se encontra na ferocidade da entropia,
Paciência! Talvez tenha se esquivado de encarar o espelho,
E não lembrar da minha devoção mais profunda.


Desde o dia que senti na boca a ácida resignação,
Do jogo que acabou em derrota demasiadamente dolorida,
Se olhar para trás, caminharemos para algum lugar,
Sempre a passos largos para nunca mais nos encontrar.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Atos de Felicidade (Falsas Verdades)



They passed me by all of those great romances
("One of us", Benny Andersson/Björn Ulvaeus, 1981)


Todas as pequenas e frágeis mentiras cotidianas,
Dariam para encher mais do que uma caixa d´água,
Voláteis, perniciosas e instantâneas em sua essência,
Uma mentira nasce para morrer e não vingar.


Falsas verdades para sustentar o fardo diário,
O olhar ao espelho já é um vestígio do desapreço,
Agora é o presente: mais gorda, mais magra, mais velha ou mais nova?
Com quantas mentiras queremos agradar o ego despedaçado?


Ah, o etéreo desejo de amar (amar o Amor?),
Ao ponto de quase implorar migalhas de pseudo-amor,
Quando bate no estofamento emotivo, nada é construído,
Vira-se a página e segue o retorno da ilusória procura.


Os sentimentos alardeados são todos da elasticidade de um cristal,
Com alguma discrição, vêm à tona as verdades pseudo-amorosas,
Cenas de um descolorido teatro-bufão: Eu te amo aqui, lá e acolá,
O círculo viciado de sobrevida de um lirismo moribundo.


Solidão unida ou separada: não fazer nada para não danificar o ego,
A regra é manter intacto o que restou da estrutura sentimental,
A esperança imersa num poço dos desejos de gelatina flutuante,
Retocar a maquiagem na vã esperança de não sucumbir à vida banal.


Bem-aventurados sejam os padrões da felicidade prometida,
Borda-se com esmero uma Shangri-la no pote de margarina do comercial da TV,
Famílias com todos os dentes e seus sedutores eletroeletrônicos à disposição,
Eu amo, tua amas e com tanto Amor alguém ama além da aparência?


Dinheiro, status e satisfação, legados de um matrimônio perfeito?
A espetacular criação de urgentes necessidades essencialmente efêmeras,
Labor ou prole: a mulher-maravilha com bateria ligada em “stand by”,
Tamanha sofreguidão para a ansiada vacância dos trinta dias anuais.


Comprar, comprar, comprar e nunca saciar a insatisfação,
Dias depois, o estoque de mercadorias não trás mais alegria,
Crediário, cartões e talões bancários para se obter novo prazer imediato,
Quem sabe um vistoso EcoSport para a promessa de nova felicidade?


Amores ilusórios após o débito automático,
Amores instantâneos na porta dos bordéis,
Amores infiéis na cama fria dos motéis,
Amores frustrados em camas isoladas sobre o mesmo teto.


Verdades que todos temem a saliente sangria,
Melhor a beneplácita cegueira do que a cura ocular,
A contração surreal do imaginário em busca do prazer,
Falsas verdades guardadas numa caixa de fluoxetina.


(Escrito por Wellington Fontes Menezes)


sábado, 5 de junho de 2010

A Outra Margem (Downtown 2010)


When you're alone and life is making you lonely
You can always go
(“Downtown”, Tony Hatch/Petula Clark, 1964)


Na outra margem há muito mais que destinos,
Uma ponta de esperança num aquário vazio,
Tantas quimeras possíveis de serem realizadas,
Sem nenhuma certeza sobre tudo que paira no solo.


Na outra margem há muito mais que saudade,
Aquele sentimento indócil que aflige o estômago,
Que rasga como lâmina em corte fino e cirúrgico,
Pústula latente sufocada no estofo do travesseiro.


Na outra margem há muito mais que verdade,
Ninguém se habilita de fato para corresponder a veracidade,
Palavras miúdas e salgadas são atiradas a esmo no pasto,
Nada germina sem que haja uma boa receptividade do asfalto.


Na outra margem há muito mais que paixão,
Não se trata de meros namoricos pueris de portão,
Fantasia infante que possui a exata profundidade de um pires,
O Amor é como um eclipse: terno, natural e preciso.


Na outra margem não há tempo para blasfêmias ou mal entendidos,
São tantas as riquezas estúpidas de avara descontinuidade,
A falta de coragem para conduzir o que é apenas o necessário,
Basta de mediocridade com o firme propósito de macular a ilusão alheia!


Correr de um lado para o outro sem retorno,
A distância que separa a ficção da fatalidade,
Um rio que interdita o curso natural da paisagem,
Mãos que eram unidas e agora balançam desprotegidas.


Talvez um grito percorra a atmosfera e possa chegar até a outra ponta,
Tarefa inútil se no meio há um cercado de surdez atroz,
A garganta seca antes que a mensagem seja acolhida,
Soluços não são ouvidos com as flores abandonadas na margem.


Há muito capricho narcíseo para pouca felicidade e segurança,
As pernas estioladas querem inutilmente suplantar qualquer cansaço,
Contra as intempéries da Natureza, a fisiologia é limitada e fraca,
A outra margem não será atingida com os sarcasmos da veleidade.


Uns marcham como tolos soltados paridos de alguma batalha,
Seus líderes toureiam como se estivessem numa cenográfica arena degustando caviar,
Utilizam-se de velhos bordões e frases amareladas pelo calendário,
A outra margem vai além da mera e frígida coreografia habitual.


Tantos conflitos redundados em poças de sangue na diminuta visão do cosmo,
Há um mundo que precisa ser descoberto quando se está cego debaixo da cama,
Permita-se viver ao incinerar as velhas e angustiantes falácias corriqueiras,
E somente na outra margem você encontrará o estaleiro da liberdade.


(Escrito por Wellington Fontes Menezes)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

O Jardim de Amianto


Frio tácito que assombra a cidade soturna,
Olhos vigilantes dilacerados na escuridão atávica,
Nada de imediato é possível de ser escutado,
Ecoa no vento o lamento furtivo de qualquer razão.


Peregrinos anônimos ocupam calçadas e sarjetas,
Nutrem-se de restos revirados de lixeiras,
Fumam entorpecidas pedras alucinógenas,
Vida vegetal vagando no espaço público.


Os poucos que se aventuram a trocar passos,
Fazem de forma arrítmica, tímida e apressada,
A voraz miséria urbana contamina como cancro,
Nada resta além da resignada expectativa de morte.


Prédios decadentes assinalavam um antigo mundo,
Onde a pungente riqueza contagiava os espíritos locais,
Fluído e infiel, o capital transita de recinto a recinto,
O que era dourado agora se contenta com o latão enferrujado.


Paisagem abrigada de nula esperança habita os céus,
Bêbados vomitam e regurgitam em língua obscura,
A dignidade lançada para as bordas do esgoto,
A lucidez embriagada pela neurose sifilítica urbana.


Agentes policiais fingem conduzir o labor do seu oficio,
Muitos se preocupam mais em lucrar com os louros da farda,
E nada é tão sério a ponto de mobilizar seus superiores,
Afinal, a cidade podre é uma lata de esgoto com restos humanos.


O cheiro fétido evapora tranquilamente,
Arde com vigor na porta das narinas,
O concreto encardido lavado à uréia,
É o perfume recorrente do descaso humano.


Aos que acreditam que toda horda é parida no lixo da pobreza,
Bastaria então uma noite rubra de providencial extermínio humano,
Seria profilático varrer das ruas a podridão bem asquerosa e visível,
Parece ser bem mais fácil purgar o que é mero incomodo ocular.


Riqueza e pobreza são contrapartes unívocas,
Destinos coesos de um mesmo falso dilema,
A hostilidade coercitiva em meio à bonança,
O progresso narcísico do capital privado.


Tantos prédios vazios acolhem párias urbanos,
Incertezas fugazes de uma silueta vida seca e banal,
A cidade dorme trancafiada e resplandece cinza,
Almas sobreviventes amparam almas que desaparecem no vazio.