domingo, 29 de janeiro de 2012

Subsolo (Cidade Soturna)


Escreve, pois, as coisas que viste, e as que são, e as que hão de acontecer depois destas.
(Apocalipse 1:19)



Noite assolada pelo silêncio dos lábios,
Calada sob a tranca que congela o coração,
Neblina etérea sem dizer para onde veleja,
Semente solta na diáspora da insensatez.


Caminho a passos curtos para alguma direção,
Sem saber aonde ir ou chegar com precisão,
O tropeçar cambaleante sobre poças com lama,
A chuva agora bate como lâmina na minha cabeça.


A boca seca encharcada pela tempestade ácida,
Os olhos turvos se misturam com alguma lágrima esparsa,
Ao longe alguns cães ladram em busca de solo seco e pão,
Sirenes ecoam eventualmente deslizando apressadas.


A alma dói tanto quanto as palavras não ditas,
Não sinto mais a certeza dos tempos de outrora,
O riso comedido se transformou num traço sobre os lábios,
A noite apenas começou e já incomoda profundamente.


Do amor sobraram apenas lacunas sobre muros,
Estilhaçado sobre um peito fragmentado e estático,
Cavalos alados descem a terra para propagar a miséria,
Almas vagam inutilmente procurando um lugar para descansarem.


Reina a mais absoluta imprecisão dos sentidos,
Um zumbido quase inaudível clama por suas vítimas,
Risos alucinógenos alegram bares fedendo a cópula e a álcool,
A noite embala pedras acesas descarregando psicoses.


No asfalto frio, mais um corpo caído cortejado por jornais molhados,
Cacos de vidro tomam forma de tapete cristalino e vermelho,
Alguns tiros isolados se mesclam a um grito desesperado e anônimo,
No escuro silêncio dos olhos fechados pelo medo.


A cabeça ronda sem freio procurando um semblante,
Não se sabe se a vida é cheia de feridas por acaso,
Ou o acaso é justamente cicatrizar as feridas,
Toda certeza é corroída na noite longa, fria e áspera.


Minha pele arde sobre as vestes umedecidas,
As mãos não conseguem se secarem,
Um frio intenso abala a espinha,
Seguir o caminho mesmo estalando os ossos.


Quando o amor se for,
Não sentarei a espera de abrigo ou condolências,
Não irei embriagar-me com os demônios e as falsas santidades,
Apenas sentarei diante da chuva que afoga todos os medos e esperanças.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Sintomas



Sabe-se tanto sobre tão pouco,
Nada tão real sobre a concretude do todo.

A única maneira de manter os sonhos numa gaiola,
É deixá-los intactos e nunca realizá-los.

A espera dilacerante na estreita tensão,
Tanto ócio corrosivo que evoca o desespero.

A claustrofobia silenciosa da alma,
Lançando sua teia de dores cutâneas.

O lobo que ainda mantém a carne entre os dentes,
Passará mais uma noite sem uivar.

Os sentimentos são elos fluídos, flexíveis e correntes,
No céu, a chuva cai intermitente projetando uma atmosfera acinzentada.

A experiência da vida é sempre mais dura e menos amigável,
Porém é a maneira realista de amadurecer e manter a lucidez.

Somente o Amor mais autêntico consegue resistir,
Aos danos, contradições e os dissabores do cotidiano.

Quando a vontade procura abrigo e bate a porta,
De antemão o desejo logo começa a tilintar.

Tudo mais se eleva rapidamente como águas num lago até transbordar,
Que se transforma num grande, longínquo e evasivo mar.

De tanto olhar a solidão com sua obscura e quase infinita margem,
Afinal, quem sabe se talvez seja melhor chamá-la de oceano da saudade.