terça-feira, 28 de abril de 2009

A espera de um Destino (“Sous le soleil de Satan”)



"Porque os vivos sabem que hão de morrer, mas os mortos não sabem coisa nenhuma, nem tampouco terão eles recompensa, mas a sua memória fica entregue ao esquecimento.”
(Eclesiastes 9.5)



Sob o Sol de Satã,
Os dias minguam cravejados de suor e silêncio,
Prostrados diante de olhares moribundos e soturnos,
Dos crédulos que crêem na vida meramente como água poluída.


Nesta pluviometria de inações e reticências,
Reproduzidas em minhas tênues preces,
Quaisquer palavras que permitam reconstruir forças,
Para que possa me erguer diante de obstáculos.


Sinto na pele agruras das feridas expostas,
Como um soldado recebendo condecorações póstumas,
Não grito debaixo da torrente tempestade,
Recolho meus vocábulos em penitência para dialogar com Satã.


De tantas guerras travadas,
Da luta impiedosa pelo dourar do Amor e fuga da dor,
Não sepulto o ardor dos dias temendo vendavais,
No deserto, a boca palidece entre a secura e a inanição.


Farto das cretinices do demônios debaixo do tapete,
Não os combato temendo ser mais um deles,
Fecho meu corpo com a devoção de deuses profanos,
Nenhum dos meus coágulos foram entregues no calor da batalha.


Longe de um masoquismo fútil e viciante,
Não sinto prazer na tortura e tampouco regojizo na contagem dos cadáveres,
As vezes fecho os olhos diante das cinzas do passado,
E temo quando tenho que abri-los sabendo que ainda não encontrei algum caminho.


Não sou nenhum predestinado,
Não ganhei bilhete premiado de loteria,
Não me ofereceram vaginas de ouro,
Na batalha sem tréguas não aceito ser corrompido por qualquer bobagem.


Não me predisponho a agradar com sorrisos fáceis,
Não abandono o barco à deriva,
Não piso na jugular dos desvalidos,
Caminho, apenas caminho com ou sem forças...


Atrás de cada porta,
Do imenso corredor de arquétipos fugazes,
Não sei a rota mais acertada a desvencilhar,
Que o Deus dos ateus não me permita sucumbir em vão!


Na mesa de algum fétido bar,
Entre um meio-copo de alguma bebida e um olhar a 180 graus,
Ali estão meus fantasmas sorridentes com seus drinques,
A espera de Satã com o seu habitual discurso.


Chega uma hora na vida de cada homem,
Que ele se depara com seu próprio destino,
Imaterialmente, nenhuma fuga é possível,
Resta então sentar-se ao lado do balcão e pedir mais um copo de fel.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Retrato do Herói


Quem precisa de um herói?
Um país, uma cidade, uma mulher?
Quem sangra pelo outro?
Quem morre por uma causa?


Não é necessário um uniforme,
Capa nas costas e máscara nos olhos,
Não precisa saltar prédios, pontes ou construções,
Para ser um herói.


Não precisa combater nas trevas,
Não carece pular sobre clarabóias,
Esmurrar ladrões insanos ou pés-de-chinelo,
Para ser um herói.


Não é fundamental ter identidade secreta,
Cabide telefônica ou caverna oculta,
Cueca sobre a calça ou surgir de outro planeta,
Para ser um herói.


Os heróis não são de aço ou titânio,
Tampouco guarnecidos com chapas de ferro e chips eletrônicos,
Um herói é de carne e sangue,
Com coração e ossos que podem ser partidos.


Aquela mulher que acorda na alta manhã,
Veste-se rapidamente, troca o filho e faz o café,
Segue a caminhada até o trabalho e lá permanece por horas a fio,
É uma artífice do heroísmo.


O homem preso no andaime ou atado à beira do fogão,
O condutor que carrega vidas ou aquele que maneja o bisturi,
O lutador que transpõem o ofício das letras ou abraça uma criança,
Um herói involuntário tanto quanto se faz necessário.


O que faz um herói ser um herói?
Não é a postura ou a prepotência,
Poderes mágicos ou a força bruta generalizada,
É o coração solidário que bate no peito do herói.


Nas trevas, imerso em temporais ou sob o Sol à pino,
Suas convicções nunca esmaecidas ou traídas,
O senso de justiça e coragem,
Em busca de um mundo de plena igualdade.


No entanto, numa sociedade de exploração,
Ser herói é aquele que sobrevive um dia adicional,
Na guerra travada pela angústia inata do oxigênio social,
Ser herói é permanece vivo diante de tantas tempestades.

sábado, 18 de abril de 2009

Insônia


Alvorece mais um dia quando um outro já convalesceu,
Frio como tantos outros dias nublados e sem cores,
Clareando vagarosamente sobre o barulho fosco da rua,
A iluminação precária sorrateiramente invade o quarto.


A noite sem encontrar em parte alguma o ansiado sono,
As horas vagando em pensamentos em busca de respostas,
Como um irritante e inútil quebra-cabeça sensorial,
Nada sobrevive com alguma perfeição em seu devido lugar.


Queria poder atravessar a cidade,
Sentir apenas um único olhar,
Que trouxesse a Paz necessária,
Para os dias de desolação.


Quando se fecham os olhos pressionados na areia,
O desejo é fazer que tudo se transforme tão prontamente,
Cada vendaval resgata os estragos como rastros de sangue na epiderme,
E não leva a tranqüilidade vital para os enfermos noturnos.


Todavia a realidade é crua e compõe uma noite espessa e longa,
Amordaça, embriaga e corrói desejos,
Ao reabrir os olhos tudo ainda permanece como outrora,
Fora de toda e qualquer tentativa de organizar o descenso.


No solitário bunker predileto que um Amor se refugia,
Coexiste uma constelação conspiratória para minar os campos,
Celeiros de autoproteção, mentiras internalizadas e olhos tristes,
A solidão se materializa num prato degustado à dois.


Carros com seus motores irritantemente explosivos rondam lá fora,
Prostíbulos fecham e a cidade começa a acordar para mais uma previsível jornada,
Observo o relógio e as horas parece congeladas como o autismo do calabouço,
O evasivo pensamento padece distante, rastejante e sem coesão.


Tão difícil é manejar o silêncio na cama sem conforto,
Quando a alma se diluiu num rio desértico escorrendo pelo ralo da pia,
Aprisionado no mesmo cárcere onde se cultiva a angústia e deflora saudade,
Além da janela a claridade ronda a maior parte do dia.


Cedo ou mais tarde,
As coisas tenderão a se ajeitarem à revelia dos seus atores,
Com falsos sorrisos, ódios não superados ou algumas lágrimas,
O que se ganha no front da devastação do labirinto unipessoal?


Assim seguimos os caminhos que fingimos não percorrer,
Tempestivamente as lembranças passadas invadem os olhos sem compaixão,
No espelho banhado à luz não acordo com o semblante que desejaria,
Afinal, a atmosfera é fria e seca como um prato vazio.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

África (Aqui e Acolá)




Miséria é miséria em qualquer canto
Riquezas são diferentes
(“Miséria”, Titãs)


O que me faz falta,
Não são os restos que me deixam,
Mas a volúpia jamais alcançada,
O tempo que tolhe a liberdade.


As vísceras e migalhas atiradas ao relento,
Tenho que conviver com as idiossincrasias do que não sou?
Querem que eu aceite um cercado,
Não sou gado e tampouco pasto.


Filhos de algum prostíbulo são todos,
Todos os malditos que querem fazer com que eu engula,
O lixo que me servem como alimento,
A pocilga e o veneno que não me nutre.


Pérolas aos porcos, assassinos e canalhas,
Políticos, farsantes, mercenários apátridas,
Empilham tantos em guetos e covas rasas,
A morte e a exclusão dos vencidos.


Um cadáver apodrece ao chão,
Muitos cadáveres exibem suas tripas como ornamentos,
Viver e morrer não significa nada: absolutamente nada!
Quando o destino é o espetáculo de aberrações.


Uns pede pão; outros água,
Uns matam a sede com sal,
Outros salgam o que era azedume,
As prosaicas escolhas dentro do abismo.


A cegueira dos olhos abertos,
A insanidade na lucidez,
O grito que provém do estômago,
Por favor, que horas irei morrer?


Sangue, sede e saliva,
Crucifixo, bíblias ou orixás,
A fé dos que nada têm,
A morte como divino alívio.


Os olhos de uma criança,
O vazio do seu interior,
A derme sem carne,
O corpo sem alma.


O inferno é o sedativo,
A morte é a libertação,
A maldição das hordas abandonadas,
Quem derrama lágrimas para tanta gente?

domingo, 12 de abril de 2009

Modernidade, Obrigado! (Gaiolas Douradas, Verdades Profanas)




A vida privada é quase sempre risível,
Tantos se preocupam em serem diferentes,
Para se parecerem justamente todos iguais,
Curvando-se em círculos e mordendo a própria cauda.


Na arte de não ser o que é mais ainda,
Todos buscam burlar o que não são,
Para se mimetizarem no que jamais poderão ser,
No marketing banal de si mesmos.


Entre o querer e o poder mais ainda,
O que proporcionar maior satisfação imediata,
Não importando o que, como ou quanto,
O agora é o agora imediato.


Consumindo rapidamente para consumir mais ainda,
Não observar atentamente para além do espelho,
No reflexo não-cicatrizado de si: ego ou morte?
A síndrome narcísea do mundo à imagem do umbigo.


Correr rápido e correr mais ainda,
A vida fluída no plano da lâmina,
A angústia de viver o que não faz sentido,
A liqüefação dos sentimentos interiores.


De um cama para outra,
De um beijo amargo ao sexo frígido,
A volatilidade dos sentidos,
O caminho da prateleira do supermercado.


A realidade não existe: é um mero projeto,
A busca do gozo total é imperativo,
Da euforia extasiante à frustração melancólica,
A estrada minada de sangue entre cacos de vidro.


A tecnologia veloz do imediatismo rítmico,
Que conecta e desconecta seres viventes,
A abstração dos desejos sem rumo, fronteira ou prosa,
Quem consegue se contentar com a solidão?


Nostalgia do futuro envelhecido,
Oxalá! Onde todos os devaneios serão realizados,
A fútil felicidade nutrida em livros de auto-ajuda,
Quem ousa ser realmente feliz?


Desejamos as mentiras simples, esbranquiçadas e amorfas,
Que não faça nunca sangrar o miocárdio ou cair no vazio,
A emoção transloucada do cativeiro dourado e riso flácido,
A vida tão perfeita como num programa de computador.

sábado, 11 de abril de 2009

Sinais dos Tempos



“Pai, perdoa-lhes; porque não sabem o que fazem.”
(Lucas 23: 34)



A duração é menor que seria possível,
A durabilidade é menor do que a vontade,
Entre fragilidades, virtudes e desejos,
Tudo é levado diante da enxurrada.


A intermitência da volatilidade das águas,
Sonoridade cruel e rítmica da chuva,
Pensamentos a vagarem sobre o Tempo,
O mesmo Tempo que caminha e desfalece.


Não existem roteiros prontos para a dor,
Assim como não há coreografias traçadas para o Amor,
Quase tudo são meros folhetins equivocados,
Viver é acordar sem o mapa da trajetória.


Assimetricamente de um lado para o outro,
Busca-se encontrar o que não se exala alguma certeza,
Aliás, tal certeza é o cálice que ninguém aprecia seus dissabores,
Quem garante que a seta da vida segue sendo sempre a cereja do bolo?


Diante da janela os filetes aquosos perfilam-se sorrateiros,
A paisagem entedia, porém o ar se torna mais límpido,
Venta gélido e o barulho das trovoadas projetam temores,
Quem ainda acredita nos portais do Paraíso?


Algumas lágrimas são tristes, outras são reféns de minguada alegria,
Passa-se o dia entre o dever a cumprir e a sobrevivência a tinir,
O corpo amorfo ao chão sendo velado com tanto zelo,
No subterfúgio agnóstico de cada ser, viver e morrer são simbiontes.


Mesmo sem cessar a tempestade,
Apelamos ao Pai para a noite chegar entre os dedos,
A órfã iluminação diminuindo em conta-gotas,
E assim mais um dia acaba de zunir.


Ser livre não é gritar para que todos possam ouvir,
É silenciar para que todos possam entender,
A emancipação não é uma dádiva divina,
Todavia é a meta primordial a ser conquistada.


No reflexo do espelho é possível ver os olhos em brasa,
Quem de fato somos ou fingimos ser?
Diante da luz emanada talvez somos o que achamos possível ser,
Sinais dos tempos, alma crucificada: pobre engodo.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

Anti-cartão Postal (Anônimos Paulistanos)


São Paulo de nítidos contrastes,
República de vias convulsivas,
Palaces podres e deserdados,
Cidade nua sem disfarces.


Anhangabaú, vale de beleza e pobreza imaterial,
Ampla arquitetura aromatizada à uréia,
Ritos históricos e paisagem degradada,
Memória esquecida, aneurisma social.


Alguns párias vagantes circulam sem rumo,
E outros párias pairam alcoolizados ou entorpecidos à crack,
Putas na permuta de um naco de carne humana por alguns trocados,
A multidão mesclando-se na horda dos desvalidos paulistanos.


Vendem-se qualquer quinquilharia,
Paulistanos natos ou postiços na feroz sobrevivência,
O mundo é um grande esgoto à céu aberto,
Exalando toda a imundície insensível da cidade.


Crianças apátridas perambulam num mundo abortado,
Exalam cola e entorpecem silenciosamente à álcool,
Cadáveres moribundos libertos do seu mundo,
A severa hostilidade insone sem prumo.


Atiram pedras em ônibus,
Vigiam a sacola alheia,
Zombam de suas próprias desgraças,
A infância roubada sem hesitação.


Os cines de sexo total,
Vinte e quatro horas de puro êxtase na palma da mão,
Amor livre pré-fixado em três reais,
A sensualidade promíscua nos calos dos dedos.


São Paulo que fede,
Cheira ao falo gotejante dos que pisam nos vencidos,
Cidade que excreta seus filhos banidos,
Inválidos que caem mortos sem significados.


Uma donzela da tarde se aproxima,
Um convite sutil para o “love”,
Mas se pode hesitar simplesmente por conveniência ou juízo,
Quem ama realmente na cidade solitária?


São Paulo dos que nada herdaram,
Dominam os subterrâneos dos esgotos,
Os trens metropolitanos que rasgam a cidade,
A perpetuação banal da desgraça cotidiana.


São Paulo que esconde seus mortos-vivos,
Gritos ocultos pelo barulho dos automóveis,
O vale que escorre as agonias dos amordaçados,
A cidade que não se vê no cartão postal.