domingo, 29 de junho de 2008

Piedade


Num vilarejo onde ninguém tinha a menor idéia onde ficava,
Havia uma gruta profunda e escura,
Uns diziam que era assombrada pelo Anti-Cristo, outros juravam que era mística,
Todos tinham medo do ambiente condenado.


Uma criança que trabalhava numa colheita nas terras de um explorador,
Ao cair uma monstruosa tempestade, se perdeu de seus entes queridos,
Vagou por horas perdida e barriga vazia,
O medo impregnava os olhos e refletia nos pequenos pés calejados.


O Sol havia se escondido e já era bem noite,
Quando a menina de repente se viu diante da tal gruta temida,
Era tão mórbida que o seu coraçãozinho gelava,
Retornou a densa chuva, sem escolha ela adentrou a gruta.


Pés em pequeninos filetes de sangue e lentamente trocava as pernas,
Era guiada por uma tênue luz ao fundo,
Entre morcegos, ofídios e insetos vicejantes,
Sem cessar o medo e com taquicardia a menina seguia adiante.


Para deslumbre da boquiaberta criança,
O impossível se irradiava diante de seus pequenos olhos,
A luz não era um demônio, tampouco saída para parte alguma,
Mas um colossal dragão que ali permanecia anos a fio.


A menina ficou emocionada pela fantástica descoberta,
O dragão era disforme e as asas estavam semi-abertas,
A menina sentia que havia naquele monstro uma docilidade e fragilidade,
Feito os primeiros contatos, a criatura foi logo batizada: Piedade.


Piedade era grande e triste,
Após ser feito empatia e imediata amizade, trouxe comida à menina,
Apesar da diferença de tamanho,
Piedade também era uma criança imersa em medos e inseguranças.


A menina passou alguns dias na gruta se recuperando dos ferimentos,
Mas decidiu abandonar daquele ambiente soturno,
Não queria ir sozinha,
Ela precisava de Piedade.


Saindo das trevas, Piedade era maior do que seria possível imaginar,
Solitária, a menina queria somente voltar para sua família,
E começava o retorno para a casa,
Piedade sempre caminhava ao seu lado.


Pelo hostil trajeto, somente estragos feitos pelos dias de longa tempestade,
Um cenário de desolação com vários corpos pelo chão,
A criança assustada chorava sem parar,
Piedade não podia fazer nada!


Ampliou-se gradativamente a aflição da menina,
Não imaginava o que poderia ter acontecido com sua família,
Quanto mais caminhava, mais surgiam corpos e desabrigados,
Piedade não podia fazer nada!


A fome era grande entre as pessoas e a morte era o destino comum,
Ela ficou horrorizada com gente sobrevivente se alimentando de gente,
Dias de longas chuvas trouxeram a barbárie à região,
Piedade não podia fazer nada!


Passos apressados e o medo se ampliavam na menina,
Buscava desesperadamente o caminho de casa,
A angústia assolava sua aturdida mente de criança,
Piedade era grande, mas não conseguia consolar.


Após horas vagando em vão, encontrou um caminho,
A devastação lhe fazia paisagem,
Começou a correr para mais rápido até encontrar a sua casa,
Piedade se movimentava, mas não sabia o que fazer.


Por fim, vislumbrou sua casa e tudo era tragédia ao redor,
A pequena plantação tinha sido destruída e o que sobrou saqueada,
Encontrou a porta entreaberta e seguia trêmula,
Piedade era gigante, mas não conseguia adentrar na casa.


Em cada cômodo, um turbilhão onde somente restava ser lamentado,
A menina correu para o quarto dos pais,
Com as mãos aflitas, empurrou a porta,
Lá fora, Piedade era pura aflição e expectativa.


Sobre a cama encontrou sua mãe deitada,
Não mais respirava há horas,
Em desespero, a criança debulhou lágrimas compulsivas,
Piedade era grande, mas não salvou a mãe.


Entrando no outro quarto,
Dois irmãos jaziam em silêncio fúnebres,
O ambiente destroçado e os seus olhos bailavam fios d´água desperfilados,
Piedade era grande, mas não salvou os irmãos.


Tanto desespero acobertou a menina,
Cadê seu pai que não encontrava em parte alguma?
Buscava com suas frágeis mãos tatear qualquer coisa que poderia ter vida,
Piedade era grande, mas não trazia nenhuma esperança.


Ao redor da casa, a menina se pôs a procurar o pai,
Viu ao longe seu corpo caído com mãos que parecia fazer alguma oração,
As lágrimas ressoavam com cada músculo de sua face,
Piedade era grande, mas não salvou o pai.


Agora a menina se encontrava sozinha no mundo,
Sem abrigo, família ou Amor,
Agarrou-se a criatura como último refúgio,
Piedade era grande, mas não salvou ninguém.

Num mundo de destruição sem fim,
A menina tentava sobreviver à tamanha precariedade e miséria,
Mas com tanta epidemia pungente, a criança adoeceu em profusão,
Piedade era grande, mas não sabia o que fazer.


Frágil, febril e agonizante,
Em pouco tempo não conseguiu resistir à moléstia,
Ali, a pequena e frágil garota com olhos profundamente tristes desfaleceu,
Piedade em prantos, não salvou a menina.


Desamparado, Piedade percebeu que a vida dos homens,
Definitivamente não era o seu lugar,
Somente assistiu violência, perdas, devastação e morte,
Piedade retornou à sua insólita gruta e nunca mais saiu de lá.


E a partir deste momento,
Ninguém mais viu Piedade,
Uns diziam que Piedade era uma mentira,
Outros juravam que Piedade era uma profecia.


Para a maioria, Piedade nunca existiu,
No fim dos tempos e sem nenhum paradeiro,
Enfim, todos eram unânimes numa certeza,
Piedade era uma lenda.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

A Rosa do Cais


Entre tantas paisagens amorfas,
Ela estava com brilho atípico,
Não era noite e nem era dia,
Simplesmente irradiava toda a sua energia.


E como tantos dedos fantasmagóricos querendo usurpá-la,
Uns com vontade violenta, outros com sorrisos cínicos,
Ela era desprotegida, mas sempre muito tenra,
A rosa se perfilava intacta diante dos vendavais.

A noite era nebulosa, longa e fria,
Uma penumbra que a fazia tremer,
A rosa lá fechada em seu desalento canto,
Talvez esperando alguma nau aparecer.


No cais, navios e barcaças velejavam em ritmo incessante,
Chegada e partida, carga e descarga,
Não havia tempo para sensações além do pétreo cotidiano,
A rosa toda fechada em si, somente buscava um abrigo seguro.


Seu perfume assolava todo o cais,
Não havia aquele que resistia ao seu aroma,
A rosa de tão cobiçada era maltratada,
E fechada, ela já não ligava mais para nada.


E os dias se passaram sem contar nos dedos,
De repente um desavisado marinheiro subiu ao cais,
De relance, sentiu-se magnetizado pelos olhos daquela flor tão rara,
O coração foi atado e congelaram-se as palavras.


Mas a rosa não era para qualquer forasteiro,
Não era prometida, mas também não se rendia aos próprios sentimentos,
A rosa não sabia o que era Amor,
Não sabia nem mesmo o que fazer para não amar.


A madrugada venceu as horas,
O frio acobertou a todos,
A rosa não sabia se fugia ou se entregava,
Um dilema de tão grande, assustava!


E então, como de praxe,
Sem mais, nem menos,
O mar se turvou em intensa tempestade,
E as águas levaram para longe aquela rosa.


A partir de então o mundo caiu,
O sorriso se emudeceu,
Não se ouvia nem mesmo um simples alfinete caindo ao chão.
Tudo era um oceano de desolação.


Em verdade, foi visto que até as nuvens se acinzentaram,
A rima inexata se completou,
Saudade e dor convivendo lado a lado,
O cais era a rosa e essa flor era o próprio Amor.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Fogo Cruzado


Se a dor fosse apenas uma metáfora,
A vida seria como uma folha de papel,
A cada rabisco indesejado ou grafia mal redigida,
Bastaria amassar e atirar a indesejável ao cesto.


Se os sonhos fossem apenas miragens,
Restaria esperar pelo último fôlego,
Ficar quieto e imobilizado debaixo da cama,
Até chegar à morte com sua populosa caravana.


Se a vida fosse apenas uma óbvia redundância,
Aritmética estéril e atávico valor prefixado,
Tudo já seria pré-formatado como janelas de condomínio,
Acontece que um mais um raramente é uma soma de duradoura felicidade.


Se todas as angústias fossem insolúveis,
Bem melhor seria trancar a vida no guarda-roupa,
Pendurar em cabides cada um dos fantasmas castradores,
E viver com os olhos fechados e as mãos egoístas.


Para onde correr quando a correnteza surge em sentido contrário?
A vegetação é densa e a luz é rarefeita,
Não há sinais claros e nada é usualmente óbvio,
As incertezas presentes são guias desnorteadas pelo caminho.


Os dias que se transformam em páginas em branco,
Não há afeto que não possa merecer um único rascunho a lápis,
A futilidade das horas desfalecidas a cada giro dos ponteiros do relógio,
Parábolas inconsistentes que não explicam a opção pela fuga.


O coração latejando é sempre deixado em reclusão,
A cabeça baixa submerge a secura dos lábios,
A autopunição é o desejo mordaz de não aglutinar mágoas futuras,
A vida projetada como um mapa rodoviário.


Na palidez do sorriso esconde o embate das agruras cutâneas,
Evitar sempre refletir sobre os próprios atos,
Acreditar sempre na falsa certeza egocêntrica,
A vida atrelada como válvula de escape.


E assim tramitam os dias,
Tristes, severos e tingidos com cores artificiais,
Sob fogo cruzado a vida se recolhe no desértico casulo,
E viver se torna um verbo deixado para depois...

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Reparação (Angioplastia das horas inexatas)


O que sou,
O que era,
O que não vir a ser?
A angústia do tempo presente,
Imerso em projeções passadas,
Delírios e deságios da atmosfera existencial.


A construção dos sonhos,
A arquitetura da matéria,
A valorização das perspectivas,
Retrações e reinvenções de si mesmo,
O mundo servido à Prozac.


Tantas abordagens desejadas na planilha da memória,
Erupções das expectativas profissionais,
Quimeras do matrimônio,
Sensações táteis da maternidade,
Tantas outras auras de sorriso elástico.


Vem o destino pouco amável,
Rumos e rotas alteradas,
A ilusão da parceira que nunca satisfez,
O egoísmo fútil da essência humana,
Decepções cutâneas e chagas deletérias.


A perda como conseqüência,
A falta como pontifício,
A dor como subterfúgio,
O silêncio como muralha,
Tantos e tantos sonhos em morada d´água.


O ódio do mundo,
O ódio de si e do espelho,
A sensação de isolamento,
Risos de luxúria e histeria,
A vontade castrada.


Uns matam,
Outros mentem,
E a vida continua,
Banhada de lágrimas secas,
Submergida na fuga adiabática dos pesadelos.


Uns calam,
Outros gritam,
A vida trafegando livremente dentro da jaula de estimação,
Medos comedidos ansiando virar à página,
A gruta do pavor transformando em parque de diversões.


Uns afagam,
Outros apedrejam,
Na louca agonia de fuga das frustrações,
A negativa da realidade para compor um arco-íris surreal,
A pulsão de morte sempre presente nos momentos desplugados do real.


Conviver com as pequenas hercúleas frustrações diárias,
A margem esquerda do rio sem leito,
A miragem tolhida à esperança,
Os dias sobressaltados como cloacas de demônios,
A carne fervendo em banho-maria.


Das palavras são feitas enfeites sobre a mesa,
A opção voluntária pelo sofrimento,
O coração encarcerado no fundo do sótão escuro,
Os sentimentos afastados da ponta dos lábios,
O cotidiano pétreo e o lábios angulares à botox.


O que fazer quando o mar invadir todo o terreno?
Caminhar sobre os seixos dispersos na praia?
Esperar a angioplastia em curto prazo?
Tantas dúvidas sem nenhuma morada de certeza,
Movimento de reparação entre o que era e o que desejo vir a ser.


O tempo corrói as paredes,
O que rabiscar da vida?
A vida não é pedra,
A vida não é barro,
A vida simplesmente é...


O tempo corrói os dedos,
Aquilo que não sei,
Aquilo que nunca soube,
Aquilo que dói para crer,
Aquilo que projetei em vão...


O tempo corrói a alma,
Amor ou abandono?
Saliva ou silêncio?
Liberdade ou muralha?
Todas as emoções confinadas no interior de um cofre.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Caminhos da Dor


Quando havia o caminho do sorriso,
Tudo eram alegria e desejo,
Crescia dentro do íntimo uma vitalidade única,
De Amor, sintonia e prazer atávicos.


Quando veio a tempestade,
Turvaram-se as nuvens e a cor do asfalto,
O ar se tornou muito mais rarefeito,
A melodia que era límpida cessou...


Cedeu a noite densa e melancólica,
Como lâminas que margeiam a carne,
As palavras foram deixadas de lado,
Só um grunhido de angústia vingou...


Ao redor ninguém ouvia ou tinha capacidade para entender,
Todos julgavam precipitadamente que dos seus olhos,
Brilhavam como cálice de uma surreal claridade,
Mas o olhar de fato era triste e o semblante se empalideceu...


A chuva fria e seca,
Bradou sua energia intensa e feroz,
O corpo todo úmido de lágrimas e chuva,
Em vão, desejava abarcá-la em meus braços e aquecê-la com segurança.


Seus olhos entreabertos buscavam uma pequena luz,
Mas a escuridão torpe nublava o caminho,
A densidade dos dias ampliava a opressão,
E o desejo de liberdade era suprimido.


Recolher-se ao abrigo é um movimento natural,
Na estação os últimos trens já partiram,
Resta muito pouco a ser feito:
Esperar ou caminhar ao lado dos trilhos?


O cansaço era inevitável sobre os pés,
As inquietudes do coração pesavam mais ainda,
As pedras disformes faziam-lhe tropeçar,
Mas o silêncio procurava enganar sem sucesso.


A dor é um imenso lago vazio,
Sobrevivendo no tempo da noite fragilizada,
Deitada na sua cama com a lâmpada de um pequeno abajur acesa,
Agarrando-se firmemente à frieza do travesseiro.


A porta trancada impede qualquer sentimento adentrar,
A procura inconsistente para atravessar entre os poros de ansiedade,
Algumas marchas indeléveis na superfície da maçaneta,
Revelam as tentativas para burlar a parede pétrea da muralha.


Cada passo que dista da alma,
Fragmenta a esperança regida,
Sob a batuta de uma inglória ópera,
A dor de cada atalho em vão.

domingo, 22 de junho de 2008

Reentrâncias


Sobre os trilhos da correnteza,
Muita coisa se passa sem deixar aviso,
Travessia latejando sem pedir licença,
Cumpre um rito sem expectadores.


Rasgam-se dias após dias,
Como papéis velhos e descartados,
O trem tramita uniformemente,
E os olhos ainda buscam alguma direção.


A cada parada em alguma estação,
Um povoado de memórias vem à tona,
Não existem segredos de Estado,
Somente a voz interrompida e lacrada.


As velas da nau são acesas,
Um lampejo no fundo denso,
Inconsistência remota em todos os lados,
No meio do breu apenas uma pequena fagulha.


Não se sabe bem a Natureza,
Um pensamento mordaz ou desejo insatisfeito,
Na terra onde as almas tremem,
Qualquer fuga são respingos de sobrevivência.


Cruzam-se os dedos,
Ansiando a ansiedade passar,
Porém nada se desvencilha sem trégua,
O pacto entre o silêncio e a dor.


Nos caminhos cruzados entre pupilas,
É temida a eclosão de mais inquietações,
Como se pudéssemos acorrentar todas as sombras no fundo do baú,
E a chave ser lançada diante da primeira janela.


Os segredos nunca postos à mesa,
Reentrâncias dos fantasmas atados à memória,
O sumidouro das palavras guarda os cânticos de salvação,
A reclusão é a sina punitiva das almas desencontradas.


Mesmo de braços escancaradamente abertos,
A brisa não ajuda a levar os medos até minhas mãos,
Entre as palafitas que sustentam sua suficiência angustiante,
Coexiste o vazio imprimindo cores enegrecidas nos laços desatados.


A cada lágrima cortada na face e escondida no travesseiro,
Mais um momento natimorto que não vingou,
O sal polvilha o desflorar do antigo jardim,
E o silêncio da noite tenta em vão mumificar nossas dores.

sexta-feira, 20 de junho de 2008

Uma Canção para (ainda) Crer no Amor


O clima está seco e frio,
Ando pela cidade observando pessoas,
Uma simetria entre passos mais curtos e rápidos,
Reflito imaginando no que você estaria pensando neste momento,
E para onde foi parar o tal Amor?


Se o frio também lhe incomoda,
Tanto quanto a ponta dos meus dedos congelando,
Talvez possa entender de maneira mais tranqüila,
As sutilezas de desvelo do Amor,
E para onde foi parar o tal Amor?


Às vezes pensamos que a vida é para sempre,
Que o tempo é só um fator tolo e passageiro,
Acreditamos que logo vem à noite,
E levar consigo toda a melancolia presente,
E para onde foi parar o tal Amor?


Acontece que entre a imaginação e a realidade,
Um mundo de possibilidades pode acontecer,
Entre fantasias, dores, mitos e fantasmas,
A vida é bem mais pétrea do que queremos acreditar,
E para onde foi parar o tal Amor?


Sabemos fazer tantas coisas,
Exceto expressar os sentimentos mais íntimos,
Escoando a vida não vivida entre o fosso dos dedos,
Diante de um vácuo sempre persistente,
E para onde foi parar o tal Amor?


Naquela manhã que acordamos com alguma disposição,
Talvez nos primeiros raios de Sol,
Possam levar algum calor para superfície da pele,
Até quando o mesmo Sol partir escurecendo novamente o dia,
E para onde foi parar o tal Amor?


Quando estamos ausentes,
Muitas vezes mal sentimos as próprias pernas,
Uma falsa sensação de leveza na emergência de um sentimento solitário,
Rondando lentamente nosso imaginário,
E para onde foi parar o tal Amor?


Se a convidasse para uma valsa,
Você se negaria a escutar,
Bailar com leveza diante do salão,
E aquele sorriso tão singelo sendo guardado,
E para onde foi parar tal Amor?


Lembrar daqueles momentos de singularidade atávica,
Palavras proferidas com a sonoridade da emoção,
Será que o tempo levou tudo embora,
Desbotando vocábulos em páginas amareladas de insônia,
E para onde foi parar o tal Amor?


Na peleja noturna contra a tempestade irradiante,
Borrifar mensagens num leito de pedras,
Cantarolar a letra errada da canção no chuveiro,
Observando vestir aquela roupa que só você sabe escolher,
E para onde foi parar o tal Amor?


É um tanto solitário,
Compor da Praça Patriarca ao Viaduto do Chá,
É como se voltasse no tempo e provocar seu sorriso que me fez tão bem,
Sentir o toque aveludado da leveza do beijo,
E para onde foi parar o tal Amor?


Pessoas transitam sem parar,
Risadas histéricas e gringo no saguão,
A tarde fica rangendo a espinha,
E a lembrança do seu semblante velejando,
E para onde foi parar o tal Amor?


Perguntas que não desejam encontrar respostas,
As questões devem ser sentidas e não sucumbidas,
Não existe troca segura entre o travesseiro da cama,
E o afagar imemoriável da permuta de olhos,
E para onde foi parar o tal Amor?


De tão inexato o destempero das ações,
Não é possível saber nem mesmo o motivo causal,
Nem porque o oceano virou deserto,
E marejamos os olhos na implacável distância,
E para onde foi parar o tal Amor?


Nada sei sobre as melhores formas de convencimento,
Da eficiência enigmática das palavras mais acertadas,
Não consigo persuadir a demovê-la de suas muralhas,
E restam sempre as vãs tentativas possíveis,
E para onde foi parar o tal Amor?


Entre tantas palavras à toa,
Haja aquela que sem eira ou nenhuma beira,
Atingir de forma mais entusiástica e quase despretensiosa,
A chave que desacorrente as celas tão vigiadas do coração.
E para onde foi parar o tal Amor?


Quem sabe um dia,
Possa compor outra canção,
Que não seja apenas para preencher de palavras,
O velho bloco de anotações.


Quem sabe um dia,
Ainda consiga compor sem sofreguidão,
Uma canção para você,
Enfim, uma canção para crer no Amor.



(São Paulo, Viaduto do Chá, 30 de maio de 2008)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Claustrofobia


Quando seus olhos se escondem,
Temendo a claridade do dia,
Sôfrega com a penumbra noturna,
Meu coração sem voz se aglutina.


Tudo tende a ficar fechado,
No espaço diminuto entre o solo e o teto,
As paredes começam a se contraírem,
O oxigênio se torna mais escasso.


Quando os dias pesam algumas toneladas,
Sobre as cabeças atordoadas dos viventes,
Ninguém está imune às intempéries,
Todos são reféns do confinamento do tempo.


Aqui, longe dos seus olhos de volúpia,
Imerso em pensamentos e papéis avulsos,
Sinto latentemente as arestas do quarto,
Reduzirem-se a cada dia de inexata ausência.


Temperatura gélida e uma canção ao longe,
Como se estivesse sendo abafada,
Comedida no interior de um recipiente,
A saudade sendo sufocada dentro de um barril de pólvora.


A solidão do cárcere,
Onde as confissões são impossíveis,
Os dedos já não se encontram tal como carecia,
E de repente a luz se apaga ampliando o vazio.


A densidade do mórbido calabouço,
Prisão erguida pela réstia de pedras da sua muralha,
Quando a luz tão necessária não é sentida,
Nenhuma flor nasce diante das trevas.


Seguem os dias sem descanso no peito aberto,
No labor diário sem recompensa alguma,
As paredes da memória oprimindo a cada centímetro por dia,
Avançam implacavelmente sem direito às súplicas.


No momento que fecho os olhos,
As pálpebras caem como tempestade de trovões,
Gira incandescente todo o espaço à volta,
O tempo corrói a alma sem conhecer trégua.


Luto para conter as barreiras opulentas,
Na inglória tentativa de proteger a sua alma,
Porém, nunca fui nenhum idílico cavaleiro de conto de fadas,
Em trêmula carne, resta a claustrofobia cardíaca oprimindo a todos.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Multidão


Na cidade sem limites,
Apressada, vigiada e sem juízo,
Transeuntes peregrinando com passos rápidos e sistemáticos,
Rostos anônimos que compõem a anônima paisagem.


Pelos cantos das calçadas,
Gente jogada como saco de lixo humano,
Perambulando sem destino pelas ruas sem morada,
Revirando latas, rosnando a dor e carregando a fome.


Na longa maré da multidão angustiada,
Entre a falta da grana, pranto descomedido e atormentada solidão,
Assola o desespero pela luta de um dia adicional de sobrevivência,
Os recursos desnivelados e a opressão intangível se ampliam de acordo com o volume da carteira.


Carros em fileiras sem fim buzinam de forma frenética,
Motoristas salivam paranóicos atrás do volante,
A transgressão ditando os rumos da linguagem castrada,
Todos são inimigos de todos no reino da absurda insensatez.


No passo acanhadamente apressado,
Na bolsa bem aderente ao corpo e o celular na mão,
No olhar desconfiado com pupilas dilatadas,
A indústria do medo lucrando e corroendo qualquer segurança mundana.


No palco da indiferença coletiva a miséria é o espetáculo,
Mãos esticadas implorando trocados acenam para câmeras eletrônicas,
Meninos nos faróis entre a mendicância e os primeiros furtos juvenis,
Os filhos da pátria de putas anônimas diluídos como excrementos sociais.


A multidão homogeneamente heterogênea e disforme,
Encarna a liturgia da transubstanciação etérea via realização pelo consumo,
Na vastidão da falta, a sede insaciável do desejo é nunca satisfeita,
A felicidade ingênua e fugaz no tilintar da máquina registradora.


Nas ruas afloram como metástase,
Barracas e banquetas dos proletários do Terceiro Milênio,
Berrando incessantemente pela supervalorização de suas mercadorias,
As deletérias faces da exploração anônima do trabalho invisível.


O inchaço endógeno da multidão cerceada nas senzalas modernas,
Entre córregos, ratos, controle remoto e mar de parabólicas,
A podridão que vem da boca de fome e fumo fornecendo matéria-prima para narizes platinados,
A repressão desgovernada que humilha a todos e transforma a paisagem em praça de guerra.


Das réplicas piratas aos passes do pai-de-santo da beira da calçada,
As vozes vociferantes dos oradores alienados de Cristo se confundem com buzinas automotivas,
Passos apressados da multidão ziguezagueando em procissão,
Na batalha fratricida regida pelas leis de Darwin.


Dos que podem comprar suas egocêntricas bolhas de pseudo-segurança,
Diante da multidão, cada abrigo se transforma num bunker particular,
A vida sitiada entre câmeras, polícia privada, grades e neuras,
O inimigo acorda toda manhã diante do espelho.


Ninguém tem rosto algum,
Ninguém tem alma nenhuma,
Ninguém tem absolutamente nada,
Mas há aqueles que se servem do cartão de crédito na autofagia do consumo.


Multidão de bocas e olhos anônimos,
Uns clamam para algum Deus,
Outros assassinam sem piedade qualquer esperança,
A vida valendo bem menos do que algumas migalhas.


Multidão que se multiplica,
Que mata, morre e regenera consumindo tudo a sua volta,
Canibalizando sem tréguas uns aos outros,
Construindo a matéria sem partilhar riquezas ou solidariedade.


Guerras subterrâneas polvilhadas ao redor do planeta,
A multidão sedenta por sangue e salvação,
Devorando uns aos outros sem direito às cenas de mocinhos ou vilões,
Será que algum dia a tal Paz deixará as catacumbas do seu meretrício metafórico?

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Papéis Avulsos


Não ouso lhe dizer,
Mais do que é necessário,
E nunca menos,
Do que é preciso ser dito.


Não desejo mais do que a essência,
Sem maiores rumores,
Somente os lábios sequiosos,
Dispostos a não se calarem diante da dor.


Não estou disposto a somar fantasmas,
Ser mais uma peça no tabuleiro das angústias,
Pairando sempre ares desagregadores,
No silêncio aflito da fuga solitária.


Não pertenço a nenhuma matilha,
Nego o usufruto da ilusão dos condenados,
Sou livre das canalhices bem mapeadas e diluídas na multidão,
Com a dignidade pertinente sem heroísmos banais.


Não fecho os olhos temendo a claridade,
A escuridão não apavora tanto quanto deveria,
Cimento a fé com o suor da caminhada,
Avanço entre os dias desejando nunca cair em vão.


Não arquiteto meus dias com precisão pragmática,
Arregimentando tijolos para o cárcere alheio,
Na tentativa de afogar o outro com desprezo cutâneo,
A fabricação insensata da própria auto-afirmação.


Não velejo na borda das facilidades corrompidas,
Apenas para satisfação imediata do ego,
Sem ornamentar o espelho do umbigo,
Opto para ir bem além do milimétrico nariz.


Não desejo nenhuma felicidade mitigada,
Feridas chagásicas expostas na inútil velocidade,
Quero seu sorriso arrebatador como cálice,
Para brindar com o advento do Sol a cada manhã.


Não recolho feridas de batalha,
Deixo-as exposta ao vento,
Para servirem como indeléveis memórias,
E, quem sabe, os fracassos não se reproduzam aleatoriamente.


Não corro bem comportadamente temendo riscos,
Ardo no veraneio das noites a fio no mormaço do solo salgado,
Anseio o labor da necessidade de transformação,
Movimentando com vigor a energia orgânica dos moinhos da vida.


Não acredito na vastidão do calabouço como as portas da redenção,
Diante das trevas há apenas a voracidade sintomática da deserção dos desejos,
Fomento a busca incansável da emoção que permita entrelaçar os dedos,
Palavras honestas e atenuadoras de ansiedade repousadas sobre seus pés.


Não procuro acender ao topo do egoísmo esterilizado,
Escondidos dentro do baú os bens sentimentais forjadores do caráter,
Provém a liberdade na internalização do aprendizado de erros,
Neles coexiste o fortalecimento da areia que se transforma em asfalto.


Não busco a guerra,
Quero apenas o ato sonhador,
Que possa trazer alívio à sua alma,
Que um dia possa confiar em minhas mãos.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Avant –Première (Roteiro da Fragilidade dos Dias)



Frio intenso e chuva,
A noite que arde na ausência,
Rios de água que despencam intermitentemente,
O olhar prostrado no vazio.


Quando um se recolhe em si,
A penitência é transbordada também para o outro,
O que era orgulho vira clausura,
O cárcere outrora privado agora se traduz no algoz partilha.


Quando o “nós” é substituído pelo “self”,
O desejo a dois é submetido ao narcíseo ego,
O diálogo se escraviza em solitude,
A sensibilidade é trocada pela instabilidade.


Quando a linguagem se torna refém,
Os juramentos mútuos perdem a força esperada,
O medo passa a gerenciar as ações,
A segurança de tudo se dilui na fragilidade dos dias.


Os ponteiros do relógio crucificam a cada minuto,
O tempo de cada sôfrega saudade,
Soerguida pela força de um guindaste,
Abrumando o vácuo solene do dias.


Na manhã de um gélido despertar,
A cama não conseguiu ser aquecida,
Os pensamentos marejaram em vão pinçando a sutiliza dos momentos,
A mão que toca o leito e sente a severidade do Saara.


Sempre se aposta na auto-suficiência,
Para burlar as próprias fragilidades,
E quando se observa um olhar tempestivo,
O ego tolo cala a fala sentida.


Sufocam-se os desejos com todo o receio,
Acreditando ingenuamente que assim eles não afloraram,
Vaticinam com silêncio os dias dormentes,
Arrastados com as turvas águas da chuva na calçada.


E o castigo permanece latente,
Sonhos contidos e pesadelos acres na boca,
A insônia como indigesta companheira de viagem,
Mais uma manhã despontando sem a luminosidade necessária.


A pressão neurótica da fluidez cotidiana,
O vai-e-vem sem contexto e imaginação,
O sabor da existência se resumindo no livro-ponto assinado,
A liberdade é mais um dos raros bens escassos que foi roubada.


Todos juram ter suas próprias fórmulas mágicas,
Acreditam na autofágica ilusão da mercadoria,
Nada tem mais significado quando tudo se aliena,
Quando o desejo se curva perante a angústia.


E assim transbordam os dias,
Mumificados de sentimentos agonísticos,
A busca desesperada tão dispersa de si,
Tudo se torna diminuto diante da avassaladora fragilidade cotidiana.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Circo Solitude


Nos dias de procissão na antiga cidade vazia,
Cimentado pelo funeral dos lábios,
As palavras solitárias jazem sem vigília,
A ansiedade se eleva com o comboio que traz o circo.


Adentra sem aplausos ao picadeiro,
Um conjunto de tantos sentimentos e animais sem exotismos,
Sob o palco dos vocábulos maltratados e esquecidos,
Um rangido distante de dentes em desolação.


Os dias se sucedem de forma matreira,
Sorrisos esquálidos sem exalarem nenhuma graça,
Palhaços com seus pastelões saltitam sem juízo,
Abracadabra sem poções mágicas.


Páginas esquecidas atiradas pela janela,
Como a areia fina deslizando do caminhão,
A borracha desgastada mancha o papel o que não pode mais apagar,
Lá vêm os trapezistas saltando em vão!


No crivo das palavras sem rumo,
O coração perambula desapegado da seta do tempo,
Fingindo calar os sentimentos mais profundos,
Dias esbranquiçados sem humor.


Entre a lona e o palco,
Um espetáculo de brilho ausente e estrelas cadentes,
O chão fosco de terra batida tingido com marcas indeléveis,
E no final, somos dois espectadores desejando os mesmos atos.


Avançam os caminhos sem oásis,
O circo perambula sem norte,
A cada parada a companhia realiza antigos ensaios,
A insossa criatividade de não trazer alegria.


Na primeira fila uma garotinha sozinha,
Esfregando os olhos e esboçando um sorriso sem jeito no canto dos lábios,
Com uma tristeza quase indisfarçável,
Aplaude com graça silenciosamente o show.


Palhaços que não reproduzem gargalhadas,
Saltimbancos pálidos sem inquietações,
Um marasmo de tédio pulsando com um música ao longe,
Um circo alheio à vida sem alegria.


O circo recolhe todos os seus atores e cenários,
Agora se prepara para descarregá-los em outro vilarejo,
A alegria que foi deixada para trás,
Não anima nenhum sentimento.


No demiurgo da produção em cataclismo,
O circo dobra a lona e parte para a estrada,
Deixando a saudade e o coração fragmentados,
Os sonhos encaixotados enclausuram um peito em desabrigo.


Oxalá! Quem sabe um dia,
De tanto peregrinar pela solitude do vazio,
O circo encontra seu íntimo significado,
Deixando de lado todas as suas marcas efêmeras.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Lábios Partidos (A Autofagia dos Sentidos)


Quando os olhos estão fechados,
Nenhuma luz pode adentrar,
No horizonte gélido da pupila,
O alvorecer de um novo dia.


Quando o rosto é desviado,
Traduz na triste dissociação dos desejos,
Nega o sinal tocante da alma,
Dificulta o acesso das palavras.


Quando as mãos se fecham,
Os dedos congelam sem calor,
A palma da mão é esvaziada,
Os lábios se sentem órfãos.


Quando a linguagem é esquecida,
A comunicação é interrompida,
O silêncio é povoado pelo vazio,
O eco das palavras ausentes domina.


Quando os lábios são guardados,
O toque não é conduzido,
Não há a fluidez desejada,
O ar frio cria fissuras indeléveis na superfície.


Quando o corpo é castigado,
Sufocado de toda a sua vontade,
Maltratado por torrentes psicológicas,
Emerge uma dor que adoece e castra.


Quando os sinais não são trocados,
Não há válvula que busca escapar,
Tudo se torna denso e fechado,
Uma noite que nunca chega ao fim.


Quando vidas sobrevivem em separado,
A distância dilacera os sentidos,
Os passos caminham lentamente,
O suor frio gela a espinha.


Quando o coração é perdido na multidão,
A busca frenética pela trilha certa,
Caminhos cheios de bolhas nos pés,
A névoa úmida que cega toda a estrada.

Quando adentra a escuridão,
Como uma derme espessa na alma,
Pesando o corpo sobre os pés descalços,
A madrugada que desperta sem ninguém ao lado.


Quando o coração é sufocado,
Contando mentiras a si mesmo,
Na vã tentativa de criar um mundo ficcional,
Só para não sentir na pele uma vida tão sem sentido.


Quando o pragmatismo de racionalidade egocêntrica engole a emoção,
Tudo fica tingindo com tons cinza e ardência mecânica,
Os dias duros e esbranquiçados desencantam tão sem sabores pueris,
E a autofágica cegueira não percebe a vida escoar entre os lábios.