quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Precessão (Caminhos Inexoráveis, Fuga Impossível)


I thought that I heard you laughing
I thought that I heard you sing
I think
I thought I saw you try (*)

(“
Losing my religion”, R.E.M.)


Se hoje é feriado,
Amanha será fardo,
Se hoje é concepção,
Amanha será parto.


Se hoje é o que se cospe,
Amanha será o que frita na testa,
Se hoje é o calculista orgulho,
Amanha será o cúmulo do desespero.


Se hoje é um tapa na cara,
Amanhã será a lâmina na carne,
Se hoje é a mão que emprega leves afagos,
Amanhã será a cara amarrada de cobranças.


Se hoje é uma bituca de cigarro,
Amanhã será a platina do nariz,
Se hoje é a euforia do vapor na roda social,
Amanhã será a fuga ensandecida do internato.


Se hoje é o vidro levantado no cruzamento,
Amanhã será um inesperado cano apontado na boca,
Se hoje é a mão erguida em sua direção,
Amanhã será o sangue alheio no asfalto.


Se hoje é a purificação pela afetividade,
Amanhã é o funeral pelo evasivo ódio,
Se hoje é sexo aprazível e libidinoso,
Amanhã será apenas um ato de caridade.


Se hoje é uma mesa farta,
Amanhã será obesidade,
Se hoje é uma pontual ruga,
Amanhã será a trilha do bisturi.


Se hoje é amor e amizade,
Amanhã será um número na agenda,
Se hoje suscita uma esclarecedora verdade,
Amanhã será um oceano de blasfêmias.


Se hoje é o leite derramado,
Amanha será inundação,
Se hoje é um caso isolado,
Amanhã será o holocausto.


Se hoje é o que não aparenta ser,
Amanhã é tudo o que não poderia ocorrer,
Se hoje há os que se elevam impondo a coerção,
Amanhã será os que se inclinarão pelas circunstâncias.


Se hoje é Sol,
Amanhã será Prozac,
Se hoje é liberdade,
Amanhã será cárcere.


Se hoje é bonança,
Amanhã será devastação,
Se hoje é claridade,
Amanhã alguém ordenará: “Apague a luz!”.


Se hoje é o mar dadivoso de certezas,
Amanhã será o pavimento de inquietações,
Se hoje ainda conseguir respirar com desenvoltura,
Amanhã será de grande valia o oxigênio arquivado.


Quem zela pelos seus medos?
Quem corre utilizando suas pernas?
Quem ensurdece a sua cegueira?
O que será do espelho quando você enterrar todos os mortos?


Tantas voltas que a esfera tende a circundar,
Tantos caminhos giram sem sair do mesmo lugar,
Tantos corpos envolvidos em nós que atam e desatam,
Quem poderá decifrar os ritos da inexorável existência?



(*) NT.: Eu achei que ouvi você rindo,/Eu achei que ouvi você cantar,/Eu acho que pensei ter visto você tentar...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Clivagem (Ilusões Cotidianas)


Sweet dreams till sunbeams find you
Sweet dreams that leave all worries behind you (*)

("Dream a Little Dream of Me", Fabian Andre & Wilbur Schwandt)



Se a vida fosse um emaranhado de pedras,
Toda explosão seria benéfica,
O cogumelo atômico seria uma benção,
O caos regeria uma salutar nova ordem.


Se toda a felicidade fosse um mero esboço de banguelo sorriso,
Todos morreriam estampados com a histriônica gargalhada do Coringa,
As fotonovelas seriam um altar para os ingênuos, crentes e fanáticos,
As famílias famélicas animariam músculos faciais para esquecerem os seus estômagos.


Se toda a realidade fosse tão somente o que se apresenta na tela,
A vida e a morte seriam apenas lampejos burocráticos,
As guerras seriam intermináveis, o amor descartável e a Paz obsoleta,
O sangue jorraria indiferente pela calçada.


Caso prevaleça o destino humano em seu afã de barbárie,
A devastação será iminente, insana e impiedosa,
A morte se apresentará como um fastidioso presente divino a ser merecido,
O elixir da dor se delineará como um mero instrumento de acompanhamento.


O que haverá atrás da porta,
O que esconderá debaixo da cama,
Quais males a razão poderá sublimar,
Se o inconsciente der vazão ao primitivismo humano?


Tantos carros trafegam irrequietos pela estrada,
Uns atropelam sistematicamente tal como derrubam pinhos de boliche,
Outros batem como se estivem num sangüento parque de diversões,
Correr, fragmentar, morrer... A vida acéfala do asfalto.


Quem não se recorda daquele anjo que desceu a Terra?
Porta-voz de um atípico cancioneiro de Paz, justiça e fraternidade,
Tanto irritou a cobiça desmedida dos homens e a sede de ódio fortuito,
Por ecoar blasfêmias pacifistas, foi punido com o corpo batizado de ferro e madeira.


A projeção viril e volátil de um elevado e cobiçado progresso material,
A vida refém do hipermercado de mil e uma utilidades banais,
Quinquilharias ao alcance das mãos pela benção do cartão de crédito,
A angústia pela diversidade quase ilimitada de opções.


Quando a absolutamente a vida perde a razão de ser,
Um mundo ostentado de sufocante materialismo perde o significado,
O cotidiano do homo faber torna-se o seu próprio cárcere,
A desilusão de ser o que sempre desejou alcançar.


Agora, quando o tufão passar pela vida,
Abrigue-se num lugar razoavelmente seguro,
Deixe a velocidade levar tudo que lhe possa pertencer,
E preserve a alma para os ásperos e insalubres dias de desolação.


_________
(*) NT.: Doces sonhos até os raios de sol te encontrarem/ Doces sonhos que deixam todas as preocupações para trás

domingo, 18 de outubro de 2009

Vasectomia (Retalhos de Papel)


A sombra que assola a cabeça,
Deixa os dias mais turvos e instáveis,
Penumbra que desencadeia um estado letárgico de coisas,
Insatisfação e obsolescência do martírio cotidiano.


Da manhã cinza e nublada,
Aclimatada por uma atípica Primavera,
Desorganizada entre lençóis e livros,
O lampejo insone da irrequieta persistência.


Observar o tempo é como velejar em alto-mar,
Não há Norte; nem os sinais do Sul,
Acima o céu e abaixo uma dimensão inexata de água,
E tanta água que suscita a dúvida entre o afogamento ou a insolação.


Imponente, a janela continua sendo a porta do mundo,
Delimitada, hostil e ainda assim paira como único subterfúgio,
Hiperespaço de um universo de indigesta assimilação,
Fuga da realidade para além do alcance das mãos.


Projetar os dias e ceifar a espera,
Castrar a desesperança e animar-se com o vazio,
Riso catártico e palavras de resistência,
Tudo para não sucumbir em vão.


Um olhar sobre o horizonte,
Um tijolo adicional na porosa muralha,
Erguer-se como forma de sobrevivência,
Erguer-se do chão em dias de resignação.


Os olhos não desgrudam dos ponteiros,
Sobrevida fragmentada de um ciclo tedioso,
Cada minuto esconde uma dimensão continental,
Esperar, observar, respirar...


Não se deve deixar o corpo atirado no asfalto,
Alimento gratuito de abutres e demais predadores,
Não facilitar a sobrevivência de vis criaturas,
O Inferno é a ilha perdida da solidão.


A resistência é talhada em diamante bruto,
Preciosamente lapidada com fome de libertação,
Não há sangue ou vísceras que sucumbam à dor,
Levantar a cabeça em leito de tempestade.


A secura insaciável entre lábios,
A impaciência impertinente das horas,
O caminho contra os veleiros do tempo,
O martírio particular em conta-gotas.

sábado, 10 de outubro de 2009

Vazio Colérico


Você sabe tanto quanto eu,
Não há verdade eterna ou absoluta razão,
Ninguém sabe quantos tijolos pavimentam a estrada,
Do destino apenas conhecemos o princípio.


Se a verdade foi feita de refém,
Não queira alimentar o ego com ilusões banais,
Quem chega depressa espera pôr a mesa,
Quem cochila encontra os pratos vazios.


Não há chazinho adocicado para alma em devastação,
Não há álcool que cure miraculosamente os males,
Queremos tudo ao mesmo tempo para ontem,
A espera angustiada do microssegundo.


Do espelho reluz a fragmentação do ego,
No interior da íris a turbulência do inconsciente,
Qual fagulha que desencadeia a centelha?
Não há Paz que resista a uma permanente escravidão.


O Amor virou uma abstração comestível no horizonte das utopias,
Confortado num pote de vidro e singela fita colorida,
Após o consumo a embalagem é reciclada,
Contabilidade afetiva: Ama-se um, dois, três ou mil.


Os lábios trincados têm insosso sabor dietético,
A paixão figurativa com data de validade no rótulo,
O consumo de iguarias e querelas sentimentais,
No videoclipe, a fugaz porosidade do coração.


Há um vazio no meio do universo,
Fossa abissal preenchida de ar frio,
Tanto riso que não encontra graça,
Sangue, soluço e overdose de Prozac.


Em bancas de jornal tantas revistas coloridas,
A promessa de felicidade plena e instantânea,
Emagreça, corra, compre, goze e sorria,
Há sempre uma câmera para a vigília dos passos.


A assepsia do contato humano e gestos burocráticos,
Egocêntricas cidades em suas redomas de vidro,
O self-mundo encantado da autonomia de Narciso,
A caricatura patética do empreendedorismo umbilical.


A exuberância da pragmática superficialidade,
A violência dos egos em conflito e o medo atroz,
Mentiras apáticas diante da multidão do vazio,
Cada um atado à ilusão da feroz velocidade para o grande nada.