domingo, 14 de março de 2010

Salto Partido (Ego no Subsolo)


Mais um dia como outro qualquer,
O corpo se levanta inerte do leito,
O cansaço era inerente e tácito,
Dias anestesiantes como máculas.


Diante dos primeiros feixes de rugas no espelho à meia-luz,
Cabelos molhados, creme nas mãos e sem marcas de tintura na face,
Os olhos tão redondos diminuíram-se sensivelmente,
O semblante era algo tão familiar como um filme noir.


Antigas cartas de amor plástico amassadas sem timbre,
A mortuária película fina de pó sobre os móveis,
O porta-retrato trincado no canto da estante,
O eco subliminar do corredor vazio.


Debruçada sobre a mesa com a cabeça levemente baixa,
Os pratos não eram mais dispostos como antes,
A ausência do quadro na parede denunciava algo atípico,
Relembrar é deslizar a pele numa pista de vidros estilhaçados.


Os dias se tornaram demasiadamente insólitos e longínquos,
Os ponteiros no freezer não se deslocam tão facilmente,
Indigesto, o almoço esfria acompanhando a lágrima sem sal,
Sucede-se o túmulo da tarde de insipido domingo.


A bolsa presa ao corpo,
O lenço atado às mãos,
O soluço sem agitação,
O silêncio como um bom partido.


As vitrines são antídotos de auto-imagem,
Uma distração do crediário em algumas vezes sem juros,
Mudar a mecha do cabelo ou uma nova bolsa?
Enfim, ambos para a instantânea auto-realização.


O que fazer de si quando o inevitável é tangível?
O que resta da libido quando o inverossímil bate à porta?
Com tantas indagações o jeito é se apegar a velhos ditados,
Cada macaco no seu galho, até a árvore apodrecer.


Litígios, perdas não-cristalinas e sacrifícios em vão,
O velho castelo de cartas evaporou-se conforme já era pressentido,
Apostou-se no perdido (com direito ao ódio e a mea-culpa),
E despertou-se com o corpo debaixo das rodas dentadas de um trator.


Amar falsamente o próximo ou se entregar à pueril castidade?
Confiar em quem quando todos são suspeitos e culpados?
Angústias contemporâneas na cidade fétida e frígida,
O ego despedaçado entre salto e coração partido.

Um comentário:

Verônica Lima disse...

Amar verdadeiramente aos próximos...e nunca se render a castidade...porque a vida é bela!