quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Renúncia (O Cheiro do Sótão)


Na observância do calendário lembro que há quase um ano,
A última gota de sangue deslizou pelo ralo e se perdeu no limbo,
Da forma mais fria, lacônica e ingrata possível,
Na companhia do perfume de algumas pétalas de rosas.


Na madrugada perene que embalava pensamentos,
A inação lutava sem holofotes contra a inquietude,
Amores nus partidos como uma xícara ao chão,
Sob a forma de cacos pontiagudos havia uma maré de consternação.


Incrédulo, não poderia acreditar com tanta facilidade,
Que o vício do desejo sucumbisse diante da virulência do temor,
A quota suprema da coragem se evaporou como um fósforo queimado,
O anil que teimava reinar se acinzentou por completude.


No álbum de marcas indeléveis de desatinos e angústias atrozes,
Sua presença ainda não desvencilhou do inútil porta-retrato,
Não houve espaços para ódios fugazes ou revanchismos baratos,
O perdão nunca foi uma dádiva povoada de martírios.


No brejo dos dissabores adormecidos na boca,
O vazio entre os dedos ainda canaliza algumas lembranças,
Nada é trivial na superação da noite dos sentimentos refratários.
O tempo corrói, cala e consola todas as vãs palpitações.


O desencantamento se precipita por etapas,
Sem segredos maiores ou mistérios indecifráveis,
O calor do corpo é sentido em baixa temperatura,
Aquele olhar ainda permanece na memória da retina.


A renúncia é uma dor que adormece em braseiro,
Cauteriza e fecha profundos cortes sem maiores cuidados,
Porém, nada que possa ser maculado eternamente com fel,
Ausência, presença inimiga.


Com a janela aberta, o insalubre ar interno possibilita circular,
Renovar o oxigênio que se contaminou com a acidez do ambiente,
Na dura batalha para reconstruir castelos de grânulos de silício,
A disposição nem sempre vence o inevitável cansaço.


Ao apelar para o falso esquecimento,
As gotas de mentiras ficam na atmosfera,
Se a distância imposta foi o melhor amargo remédio possível,
Não desejaria saber qual seria a emergência do pior dos castigos.


Silêncio. Hoje não há mais nada a ser dito,
Apenas tocar a vida diante do certame vencido,
Olhar para o céu e respirar em busca de qualquer Primavera,
Ignorando a perda sentida: saudade, ponto final.

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