domingo, 3 de janeiro de 2010

Cheiro da Paixão


Dos olhos aturdidos em inquieto braseiro,
Tudo são sementes de perplexidade e descontentamento,
O que arde silenciosamente em chama urticante,
Nada é tão mordaz do que a sutura da ausência.


No porta-retrato jaz a pálida moldura em sentinela,
Lembranças fragmentárias conservadas em potes de fel,
De tantos passos que peregrinei em sua direção,
Um súbito precipício brotou diante de nossa ópera.


A fragrância do seu corpo era o elã que aturdia a minha alma,
Que machucava os sentidos a cada brusco afastamento,
O medo do repentino abandono era latente e inexplicável,
Previsível, até mesmo o Sol tem hora certa para se esvair.


Na ponta dos meus dedos residiam flagrantes do sabor,
As memórias do cheiro embalavam as narinas nauseadas,
O seu amor em conta-gotas foi uma centelha indolente e evasiva,
A minha dedicação foi como grãos de pólen pedidos em asfalto cru.


A sua renúncia foi como uma tosca provação de temor,
A sua incógnita verdade se escondeu como rara pérola em ostra,
Suas mentiras ofenderam a quaisquer bocejos de dignidade,
A arquitetura do pedestal ruiu em plena praça pública.


Não guardo mágoas ou outros caprichos de efêmero rancor,
No meu peito não há espaço para tais inúteis quinquilharias,
Quantas vezes você sentiu o aroma de alguma paixão?
O compromisso mesquinho com o ego foi maior do que a capacidade de elevação.


Não lamento pela infâmia dos seus subterfúgios,
Não assinarei o julgamento moral pela sua insensatez,
Sua covardia correu como putrefatos dejetos em céu aberto,
E ainda não renunciei ao rarefeito oxigênio das pueris querelas do amor.


O perdão não é a etiqueta preferencial de minhas vestes,
Porém, se sinta livre para saborear as restingas de moradas alheias,
Em outros ares, o seu cheiro se evacuará entre novos afagos e demais enganos,
Como herança, sua tez não ignorará a ausência do meu aroma que um dia foi sorvido.


Paixão, arcaísmo tolo e dono de um aroma quase esquecido,
Para quem não aprendeu a sentir pelo olfato subcutâneo a sutileza amorosa,
Poucos realmente se aventuram nos labirintos do desconhecido,
Um sabor acre do vazio assolará a fútil manjedoura do inodoro conforto.


Na despedida não foi parido sequer um digno aceno de adeus,
Sem fogos de artifícios ou lágrimas perdidas em flancos de paralelepípedos,
No nosso chão salgado, agora não se sinta frustrada pela sua canhestra apatia,
Quiçá se algum dia possa compreender a validade aromatizante da paixão...

Um comentário:

Anônimo disse...

Tão longe, tão próximo!
Como frias palavras escritas tornaram-se, de repente, em veículo borbulhante e insandecido entre dois seres sedentos de vida.
Cheiro de paixão efervescente evaporado e óbvio, que faz estremecer alicerces sem preparo, desequilibra vidas pacatas e comuns mas que às narinas atentas, faz vibrar um mais íntimo ritmo em tom maior.
Olhares que ainda não se cruzaram, pele imaculada, odores e sabores ainda não percebidos, mas transpassados por vibrações tecnológicas... cheiro de paixão, sede de pele, de vida, de tesão.
Já tenho saudade.