Espaço dedicado à análise, reflexão e crítica dos enlaces, desarranjos e autofagias do homem (i)material e o desencanto do mundo contemporâneo.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
Cadáveres do Aquário
Mamãe entrará em erupção como o Krakatoa. É importante deixa bem claro que eu não tenho culpa alguma a respeito da insuficiência respiratória dos peixes. Sim, é um problema eminentemente da escala evolutiva e caberia também aos peixes respirarem fora da água. Se o idiota do Joca, meu estúpido vizinho dono de uma horrenda cara de peixe rouba com facilidade o nosso oxigênio, por que os peixes que são muito mais espertos que ele não se arranjam em ambiente seco? Tem outra coisa a se pensar também: o que farei com os cadáveres? Deve ter uma dúzia de corpos no tapete. Conheço mamãe, ela sempre fica uma onça quando aquele tapete fica sujo. Cadáver é sujeira? Tudo bem, de qualquer maneira, mamãe não ficará nada contente com corpos enfeitando o tapete encharcado da sala. Preciso me livrar deles.
No relógio falta menos de meia hora para mamãe chegar. O importante é ficar calmo e deixar que a verdade fale por si. Qual a verdade? Oras, na verdade eu não preciso ser tão sincero. Sou apenas uma criança e assim posso omitir alguns fatos que certamente me comprometerá menos. Outra vez, nestes programas que mamãe adora, ouvi uma mulher na televisão dizendo que ser criança é diminuir suas responsabilidades. É bom se valer disso no momento. Adoro as verdades que passa na televisão. Bom eu acho que é tudo verdade, a televisão não poderia mentir de tal forma que mamãe nunca desgruda daquelas novelas, apesar dos comentários pouco elogiosos de papai. Vamos ver no que pensarei...
Posso dizer que foi uma rebelião frustrada dos peixes do aquário que planejaram às escondidas uma revolução popular dos oprimidos habitantes aquáticos contra a tirania avassaladora dos homens da superfície. Mas que homens da superfície? O aquário é da mamãe. Confesso que mamãe é às vezes muito chata, mas não tão tirana assim. Será que o complexo de Édipo funciona nestas horas? Mas como ainda sou apenas uma criança eu não poderia estar fazendo tais ilações... Bem, estava indo tão bem, mas acho que isto não vai colar muito.
É preciso ser tão convincente quanto verdadeiro. Já sei! Vou dizer que foi tudo culpa do Joca. Este moleque é sempre um desastrado. Pior de tudo é corinthiano e nunca avança sequer três fases seguidas de qualquer jogo bobo do Playstation. Na escola sempre quebra alguma coisa e ele já tropeçou e quebrou um vaso da mamãe. Lembro do tal vaso que vovó comprou num tal Paraguai e não faz muito tempo. Sim é culpado é ele: Joca.
Ufa! Ainda bem que sou esperto e penso em tudo. Joca, Joca, Joca! Quem diria que o cara de peixe aliviará minha barra com mamãe e será o responsável direto pela tragédia do aquário. Putz! Não pode ser... Não sou tão brilhante assim! Lembrei que estamos em período de férias escolares. Joca foi viajar com os seus pais e foi justamente mamãe que foi levá-los à rodoviária. Como ele poderia ter vindo hoje destruir o aquário? Que droga, Joca é tão inútil que nem para me ajudar nestas horas este moleque presta!
O tempo corre tão rápido como o Sonic. Ainda não pensei em nada convincente para justificar a mamãe. Adeus aos games, adeus à minha liberdade tão estimada, adeus às minhas regalias tão fundamentais por uma inteira e interminável semana. Por que a vida é tão cruel com as crianças que são inocentes? Aliás, eu me incluo nesta lista. Ouço o barulho do elevador. Dentro de poucos segundo ela estará aqui da cor do Hellboy e dará minha terrível sentença. Minha carreira de futuro atacante do Flamengo estará em risco com o sumiço que certamente mamãe dará em minha inseparável bola oficial. Puxa, estas bolas redondas aprontam cada uma!
Quando a fúria de mamãe é inevitável, melhor preparar o cenário para suplicar a justa clemência. O jeito é respirar fundo, preparar as lágrimas providenciais e, para tomar coragem, melhor ir encher a cara de Coca-cola.
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