segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Pelos olhos de Maria


Lá estava ela,
Sempre sentada à beira da calçada,
Sem muitos amigos,
Exceto o conforto da amizade de um gato de pêlos escuros,
Companheiro atávico desde quando ela se conhecia por gente,
O mundo sendo formado,
Pelos olhos de Maria.


Seus pais eram tão distantes e solitários,
Sua mãe era tão submissa e dispersa,
E fazia par com a insensibilidade e agressividade do pai,
E no clima de palavras e farpas silenciadas,
Ela crescia com seus lábios travados,
Ouvindo o ranger das janelas do quarto se confundindo com as lágrimas da mãe,
Tudo era dolorido, estranho e cinza,
Pelos olhos de Maria.


Nunca foi a primeira da classe,
Também não fazia nenhuma questão de tamanha ninharia,
Afinal, do que serviria a tabela periódica e a tabuada,
Para dias periódicos de monolítica ausência de alegria multiplicada?
Da casa para a escola,
E refazia cotidianamente o caminho inverso,
Todo santo dia,
Exceto nos dias santificados,
Todos os feriados eram iguais,
Pelos olhos de Maria.


Não conheceu avós,
Tampouco foi atrelada a tios ou qualquer outro familiar,
As primas eram tão chatas quantos os professores de matemática,
Com o arrefecer do Tempo,
Das aulas de Física pouco aprendeu,
Mas, no entanto, no seu físico algo aconteceu,
Algumas gotas de sangue entre as pernas,
Sentiu-se tão assustada e com baita mal-estar,
Tontura e desespero,
De onde vinha aquilo, castigo?
Das amigas (que amigas?) nada falaram a respeito,
Sangrando foi procurar a mãe,
E com uma resposta seca teve que se contentar:
“É o corpo se transformando, minha filha!...”
Mesmo pouco entendendo, seguiu adiante,
A vida era tão profunda,
Quanto à profundidade de um pires,
Pelos olhos de Maria.


Dos pequenos botões brotaram seios,
Das pernas finas,
Engrossaram um pouco mais,
E as mudanças caladas ocorriam,
A escola se tornou cada vez mais chata,
E os dias mais vazios,
Exceto por uma ou outra amiga que trocavam palavras,
Era de pouca conversa,
Tinha medo de tudo,
Tinha medo de não mais poder respirar,
Nada a atraía,
Nem os estupidez juvenil dos garotos,
Nem a bolinada indecente no intervalo do recreio,
O ódio das pessoas e o medo da vida só cresciam,
Pelos olhos de Maria.


Começou a caminhar sozinha,
A ter asco do mundo,
Aprendia que homens e também mulheres matam por mera banalidade,
Percebia que a mentira e a crueldade são as maiores virtudes humanas,
Na medida em que crescia sentia mais medo do mundo,
Era avessa a bugigangas eletrônicas,
E nunca sabia mexer nos botões do celular ou anexar arquivos em correspondência eletrônica,
Os pais permaneciam em Guerra Fria,
E se sentia culpada diante de um campo de batalha,
O tempo transcorria arrastado,
A chatice do mundo crescia,
Pelos olhos de Maria.

Certo dia, numa brincadeira de péssimo gosto,
Os colegas de escola
Pintaram o seu rosto,
Tudo a contragosto!
Correu para o banheiro,
E lavou o rosto,
Eram soluços e tantas as lágrimas,
Que não podiam mais parar:
“Que diabos de mundo eu vim parar!”,
A vida era muito cruel,
Pelos olhos de Maria.


Na TV era só guerra e violência,
Alguns pediam esmolas,
Bem próximo da escola,
E em cada farol,
Mais gente com mãos erguidas,
Não saiba mais o que fazer,
Das amigas fúteis e inimigas não-declaradas,
Uma se destacava,
Chegou a ter certo contato,
Nada que fosse duradouro,
O vazio contínuo lhe preenchia,
Queria fugir,
Mas não podia,
Queria gritar,
Mas o silêncio permanecia,
Tudo era tão hermético,
Tudo era tão pragmático,
Tudo era tão protegido,
Pelos olhos de Maria.


Os dias se sucediam,
Chegou à hora de sair da escola,
Não era brilhante,
Mas passou no tal vestibular,
Qualquer curso já era o bastante,
Só para sair de casa,
Do bate-boca familiar reinante,
Queria viver,
E não podia,
Queria sorrir,
E não entendia,
Queria liberdade,
Mas se sentia fora de sintonia.
Nunca as pessoas lhe faziam companhia,
Tudo era tão frio e áspero,
Pelos olhos de Maria.


Sua indiferença pelo mundo,
Cada vez mais crescia e transbordava,
Viu que os pais tomaram seus próprios rumos,
Pelo menos a mãe poderia enfim respirar,
Era uma vez a família,
Agora já não era mais menina,
E o mundo continuava tão gélido e chato quanto antes,
Pelos olhos de Maria.


Começou então a ter estranhos desejos,
Sonhos angustiados pela morte,
As noites se transformaram em sonolentos dias,
Já não queria ser tão feliz,
E sabia.
Mesmo tendo algum sucesso na faculdade,
Tudo era desagrado,
Ainda queria ser somente um pouco feliz,
E sabia.
Queria fugir do mundo,
Se esconder de todos,
Mãe, pai, colegas, professores e quaisquer espécimes de gente,
Tudo era tédio,
Pelos olhos de Maria.


Não acreditava no Amor,
Nunca amou e nem soube o que era amar,
Este estranho sentimento que havia lido em alguns livros,
Não tinha fantasia,
Mesmo tendo todo bem material que uma garota poderia ter em mãos,
Nada ela queria,
Exceto um punhado da tal felicidade (vacilante, ainda insistia!),
E não sabia.
Tudo era ansiedade,
Pelos olhos de Maria.


Num destes dias à toa,
Uma colega disse que tinha encontra a felicidade em cápsulas,
E disse a ela que viu o mundo girar com intensidade em garatujas multicoloridas,
Logo, a idéia lhe agradou,
Afinal, queria sair da monotonia,
Tudo era desânimo,
Ainda tinha esperança na felicidade.
Numa noite em tempestade,
Acordou de outro pesadelo,
Com a face se transformando em leito para dois longos rios,
Trêmula, ficou parada diante do espelho,
Não queria ver mais a mesma cara,
Queria fugir,
Mas agora sabia,
Tirou da mochila as tais cápsulas,
Tomou um e nada,
Tomou outro e idem,
Decidiu tomar o restante,
Queria tão somente ser feliz,
Pelos olhos de Maria.


No dia seguinte,
Não apareceu na faculdade,
Ninguém sentiu sua falta.
Seus pais estavam distantes,
Somente no final da tarde,
A colega de quarto,
Encontrou a garota prostrada na cama.
Parecia que pela primeira vez,
Fez o que sempre queira,
Deu rédeas para a própria vida,
Queria tanto qualquer coisa que se assemelhasse a tal felicidade,
Agora, encontrou de fato,
Do outro lado,
A vida sendo tão tênue e delicada,
Que é impossível de saber com exatidão,
O que realmente é famigerada felicidade.
Então de repente a vida se tornou mais simples,
E a estupidez tão óbvia,
Pelos olhos de Maria.


E a garota que tinha tamanha tristeza na vida,
Nunca era lembrada por ninguém,
Nunca deixou o amor lhe bater a porta,
Nunca aprendeu que nenhuma felicidade,
Nutre-se de fuga e apatia.
Exceto o desconsolo da mãe,
Ninguém sentiu a sua falta,
Da menina que queria apenas ser feliz,
Como muito já tinha lido,
E não sabia que a vida tem lições tão duras e invisíveis,
Minguados são os caminhos:
Abre o coração para os sonhos,
Ou logo vem inevitável queda ao se trancafiar em si mesma,
Viver não é para principiantes,
Quando se tem tanto medo da vida,
Tal como era pura angústia,
Pelos olhos de Maria.


No final do dia,
Sem sorriso ou alegria,
Ninguém mais lembraria de sua sangria,
Maria foi mais uma alma no mundo que perecia.
O futuro era sempre passado e agonia,
O presente uma grande monotonia.
A felicidade foi apenas uma doce fantasia,
Agora poderia sentir a Paz com alguma harmonia,
Pelos olhos de Maria.

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