domingo, 25 de maio de 2008

Imortalidade (Cântico do Fim dos Dias)


Quando todos pareciam mortos,
Surgiu o Diabo para dar mais um sopro de vida,
Contrariando a vontade de Deus e deixando o Céu em polvorosa,
A carência de almas a bajularem os santos já se sentia efeito.


Velhos, mulheres, moços, bêbados, corruptos, assassinos e trôpegos,
Todos ganharam multiplicidade dos dias sobre a Terra,
Eufóricos com o renascimento repentino,
Começaram a agir de forma insaciável.


Quem sempre tinha sido bom, transgredia,
Quem sempre tinha sido mau, continuava a transgredir,
A orgia fanática e frenética dos dias incomensuráveis,
A clivagem degenerada dos desejos pulsantes.


O Bem e Mal eram banalidades do passado,
Agora todos sentiam a leveza da imortalidade,
Toda trindade sacra virou bobagem,
Narciso e Sade comandavam os ritos de alforria.


A liberdade jorrava entre pulsões, gozos e estupros mal consentidos,
Uns espancavam, outros cuspiam e os demais assistiam,
Ninguém mais trabalhava e sequer ninguém cuidava de mais ninguém,
Afinal, para quê viver se ninguém iria mais morrer?


Na Terra agora ninguém mais morreria ou temeria punição divina,
Ninguém mais produzia e tampouco amava,
Adeus, Apocalipse! Agora não mais existiria o fim dos tempos,
Apenas o infinito saciar dos desejos narcíseos e selvagens.


Deus e o Diabo começaram a ficar preocupados,
Fizeram uma reunião de emergência com a cúpula dos dois mundos,
Imediatamente, o Diabo com sua esperteza milenar argumentou sua ausência de culpa,
Em letargia, Deus furioso também não sabia o que fazer para contornar o drama.


O Céu e o Inferno se reuniram em intenso debate,
Santidades e demônios acusando-se uns aos outros,
Milhares de anos de ajustes de contas pendentes,
Ninguém tinha razão: insultos e agressões continuavam a prosseguir.


Até que decidiram enviar um anjo para a Terra,
O mais novato de bom coração foi escolhido para a missão da salvação,
O anjo com orgulho aceitou a empreitada prontamente,
Despediu-se de Deus e do Senhor das Trevas e seguiu para longa viagem.


Ao chegar ao destino, sentiu que a tarefa seria mais árdua do que parecia,
Tentou se aproximar de algumas pessoas e foi logo banido,
Chegou perto de um ancião e foi recebido com agressão,
Um edema no rosto e um filete de sangue escorria pelo canto da boca.


A jornada continuou sem cessar a batalha pelo coração dos homens,
Reuniu um pequeno grupo de crianças e começou a lhes ensinar as Escrituras,
Uns poucos o admiravam, outros foram embora,
Sem medo ou cansaço, o anjo continuava sua missão sem hesitar.


Dias de tanto exaltar o Amor, uns já começaram a se sentirem incomodados,
Estas coisas de respeito ao próximo e sentimentalismo não lhes faziam sentido,
E reuniram-se para dar cabo à situação,
Se a vida é eterna, para quê pregar Paz e Amor?


Um grupo furioso decidiu ir atrás do anjo,
Cada um dos descontentes munido com um objeto agressor,
A malta se avolumava na medida em que marchavam ecoando insultos,
O desejo de praticar a morte era nítido em cada olhar revoltado.


O anjo foi avisado por uma criança sobre a evolução do motim,
Desesperado, suplicou a Deus para resgatá-lo daquela tragédia iminente,
Do Céu surgiu uma alva pomba com um recado do Senhor,
A missão era para ser comprida e, cabisbaixo, o anjo silenciou.


Após muitas buscas sem sucesso, o anjo foi encontrado pela malta,
Todo sortilégio de agressões foi emanado,
Caído ao chão, o anjo não mais respirava,
A multidão encharcada de sangue da vítima ficou estagnada diante do corpo,


O silêncio fúnebre encobriu toda a Terra,
De repente, um estrondo colossal rompeu dos Céus,
De brilho intenso, Deus e o Diabo chegaram ao solo terreno,
A malta ficou extática diante do acontecimento.


Deus aproximou-se e recolheu o corpo dilacerado do anjo,
O Diabo ajoelhou-se e era possível ouvir o balbuciar de uma prece,
Uma lágrima correu da face das duas faces míticas,
Enfim, Deus e o Diabo estavam do mesmo lado.


A perplexidade da malta se ampliava cada vez mais,
Sabiam então que a coisa já tinha passado de todos os limites imaginados,
Deus com infinita dor, abraçou o corpo do anjo e partiu dando as costas para todos os humanos,
E seguido pelo Diabo, desapareceram sob intensa e ofuscante luz.


Depois daquele dia de morticínio e trevas,
Homens, mulheres e crianças voltaram subitamente a morrer,
A imortalidade tinha acabado e a Morte também voltou a fincar seus pés,
Até o dia do último homem a pisar sobre a Terra.


No fim dos dias,
A guerra celestial findou sem proclamar vencedores,
Nem Deus ou Diabo e tampouco o Amor ou a Morte,
Tudo foi semeado de desolação e deserto sobre a Terra.


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