Num vilarejo onde ninguém tinha a menor idéia onde ficava,
Havia uma gruta profunda e escura,
Uns diziam que era assombrada pelo Anti-Cristo, outros juravam que era mística,
Todos tinham medo do ambiente condenado.
Uma criança que trabalhava numa colheita nas terras de um explorador,
Ao cair uma monstruosa tempestade, se perdeu de seus entes queridos,
Vagou por horas perdida e barriga vazia,
O medo impregnava os olhos e refletia nos pequenos pés calejados.
O Sol havia se escondido e já era bem noite,
Quando a menina de repente se viu diante da tal gruta temida,
Era tão mórbida que o seu coraçãozinho gelava,
Retornou a densa chuva, sem escolha ela adentrou a gruta.
Pés em pequeninos filetes de sangue e lentamente trocava as pernas,
Era guiada por uma tênue luz ao fundo,
Entre morcegos, ofídios e insetos vicejantes,
Sem cessar o medo e com taquicardia a menina seguia adiante.
Para deslumbre da boquiaberta criança,
O impossível se irradiava diante de seus pequenos olhos,
A luz não era um demônio, tampouco saída para parte alguma,
Mas um colossal dragão que ali permanecia anos a fio.
A menina ficou emocionada pela fantástica descoberta,
O dragão era disforme e as asas estavam semi-abertas,
A menina sentia que havia naquele monstro uma docilidade e fragilidade,
Feito os primeiros contatos, a criatura foi logo batizada: Piedade.
Piedade era grande e triste,
Após ser feito empatia e imediata amizade, trouxe comida à menina,
Apesar da diferença de tamanho,
Piedade também era uma criança imersa em medos e inseguranças.
A menina passou alguns dias na gruta se recuperando dos ferimentos,
Mas decidiu abandonar daquele ambiente soturno,
Não queria ir sozinha,
Ela precisava de Piedade.
Saindo das trevas, Piedade era maior do que seria possível imaginar,
Solitária, a menina queria somente voltar para sua família,
E começava o retorno para a casa,
Piedade sempre caminhava ao seu lado.
Pelo hostil trajeto, somente estragos feitos pelos dias de longa tempestade,
Um cenário de desolação com vários corpos pelo chão,
A criança assustada chorava sem parar,
Piedade não podia fazer nada!
Ampliou-se gradativamente a aflição da menina,
Não imaginava o que poderia ter acontecido com sua família,
Quanto mais caminhava, mais surgiam corpos e desabrigados,
Piedade não podia fazer nada!
A fome era grande entre as pessoas e a morte era o destino comum,
Ela ficou horrorizada com gente sobrevivente se alimentando de gente,
Dias de longas chuvas trouxeram a barbárie à região,
Piedade não podia fazer nada!
Passos apressados e o medo se ampliavam na menina,
Buscava desesperadamente o caminho de casa,
A angústia assolava sua aturdida mente de criança,
Piedade era grande, mas não conseguia consolar.
Após horas vagando em vão, encontrou um caminho,
A devastação lhe fazia paisagem,
Começou a correr para mais rápido até encontrar a sua casa,
Piedade se movimentava, mas não sabia o que fazer.
Por fim, vislumbrou sua casa e tudo era tragédia ao redor,
A pequena plantação tinha sido destruída e o que sobrou saqueada,
Encontrou a porta entreaberta e seguia trêmula,
Piedade era gigante, mas não conseguia adentrar na casa.
Em cada cômodo, um turbilhão onde somente restava ser lamentado,
A menina correu para o quarto dos pais,
Com as mãos aflitas, empurrou a porta,
Lá fora, Piedade era pura aflição e expectativa.
Sobre a cama encontrou sua mãe deitada,
Não mais respirava há horas,
Em desespero, a criança debulhou lágrimas compulsivas,
Piedade era grande, mas não salvou a mãe.
Entrando no outro quarto,
Dois irmãos jaziam em silêncio fúnebres,
O ambiente destroçado e os seus olhos bailavam fios d´água desperfilados,
Piedade era grande, mas não salvou os irmãos.
Tanto desespero acobertou a menina,
Cadê seu pai que não encontrava em parte alguma?
Buscava com suas frágeis mãos tatear qualquer coisa que poderia ter vida,
Piedade era grande, mas não trazia nenhuma esperança.
Ao redor da casa, a menina se pôs a procurar o pai,
Viu ao longe seu corpo caído com mãos que parecia fazer alguma oração,
As lágrimas ressoavam com cada músculo de sua face,
Piedade era grande, mas não salvou o pai.
Agora a menina se encontrava sozinha no mundo,
Sem abrigo, família ou Amor,
Agarrou-se a criatura como último refúgio,
Piedade era grande, mas não salvou ninguém.
Num mundo de destruição sem fim,
A menina tentava sobreviver à tamanha precariedade e miséria,
Mas com tanta epidemia pungente, a criança adoeceu em profusão,
Piedade era grande, mas não sabia o que fazer.
Frágil, febril e agonizante,
Em pouco tempo não conseguiu resistir à moléstia,
Ali, a pequena e frágil garota com olhos profundamente tristes desfaleceu,
Piedade em prantos, não salvou a menina.
Desamparado, Piedade percebeu que a vida dos homens,
Definitivamente não era o seu lugar,
Somente assistiu violência, perdas, devastação e morte,
Piedade retornou à sua insólita gruta e nunca mais saiu de lá.
E a partir deste momento,
Ninguém mais viu Piedade,
Uns diziam que Piedade era uma mentira,
Outros juravam que Piedade era uma profecia.
Para a maioria, Piedade nunca existiu,
No fim dos tempos e sem nenhum paradeiro,
Enfim, todos eram unânimes numa certeza,
Piedade era uma lenda.