Na cidade sem limites,
Apressada, vigiada e sem juízo,
Transeuntes peregrinando com passos rápidos e sistemáticos,
Rostos anônimos que compõem a anônima paisagem.
Pelos cantos das calçadas,
Gente jogada como saco de lixo humano,
Perambulando sem destino pelas ruas sem morada,
Revirando latas, rosnando a dor e carregando a fome.
Na longa maré da multidão angustiada,
Entre a falta da grana, pranto descomedido e atormentada solidão,
Assola o desespero pela luta de um dia adicional de sobrevivência,
Os recursos desnivelados e a opressão intangível se ampliam de acordo com o volume da carteira.
Carros em fileiras sem fim buzinam de forma frenética,
Motoristas salivam paranóicos atrás do volante,
A transgressão ditando os rumos da linguagem castrada,
Todos são inimigos de todos no reino da absurda insensatez.
No passo acanhadamente apressado,
Na bolsa bem aderente ao corpo e o celular na mão,
No olhar desconfiado com pupilas dilatadas,
A indústria do medo lucrando e corroendo qualquer segurança mundana.
No palco da indiferença coletiva a miséria é o espetáculo,
Mãos esticadas implorando trocados acenam para câmeras eletrônicas,
Meninos nos faróis entre a mendicância e os primeiros furtos juvenis,
Os filhos da pátria de putas anônimas diluídos como excrementos sociais.
A multidão homogeneamente heterogênea e disforme,
Encarna a liturgia da transubstanciação etérea via realização pelo consumo,
Na vastidão da falta, a sede insaciável do desejo é nunca satisfeita,
A felicidade ingênua e fugaz no tilintar da máquina registradora.
Nas ruas afloram como metástase,
Barracas e banquetas dos proletários do Terceiro Milênio,
Berrando incessantemente pela supervalorização de suas mercadorias,
As deletérias faces da exploração anônima do trabalho invisível.
O inchaço endógeno da multidão cerceada nas senzalas modernas,
Entre córregos, ratos, controle remoto e mar de parabólicas,
A podridão que vem da boca de fome e fumo fornecendo matéria-prima para narizes platinados,
A repressão desgovernada que humilha a todos e transforma a paisagem em praça de guerra.
Das réplicas piratas aos passes do pai-de-santo da beira da calçada,
As vozes vociferantes dos oradores alienados de Cristo se confundem com buzinas automotivas,
Passos apressados da multidão ziguezagueando em procissão,
Na batalha fratricida regida pelas leis de Darwin.
Dos que podem comprar suas egocêntricas bolhas de pseudo-segurança,
Diante da multidão, cada abrigo se transforma num bunker particular,
A vida sitiada entre câmeras, polícia privada, grades e neuras,
O inimigo acorda toda manhã diante do espelho.
Ninguém tem rosto algum,
Ninguém tem alma nenhuma,
Ninguém tem absolutamente nada,
Mas há aqueles que se servem do cartão de crédito na autofagia do consumo.
Multidão de bocas e olhos anônimos,
Uns clamam para algum Deus,
Outros assassinam sem piedade qualquer esperança,
A vida valendo bem menos do que algumas migalhas.
Multidão que se multiplica,
Que mata, morre e regenera consumindo tudo a sua volta,
Canibalizando sem tréguas uns aos outros,
Construindo a matéria sem partilhar riquezas ou solidariedade.
Guerras subterrâneas polvilhadas ao redor do planeta,
A multidão sedenta por sangue e salvação,
Devorando uns aos outros sem direito às cenas de mocinhos ou vilões,
Será que algum dia a tal Paz deixará as catacumbas do seu meretrício metafórico?
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