Espaço dedicado à análise, reflexão e crítica dos enlaces, desarranjos e autofagias do homem (i)material e o desencanto do mundo contemporâneo.
domingo, 30 de novembro de 2008
Deserto Sabático
Deitado ouço a chuva despencando sobre o teto do quarto,
Chuva intensa do veranico de novembro,
Faz calor e a sensação térmica é bem maior,
É sábado e não há novidade no ar.
A intensidade volátil das gotas d' água,
Ampliam-se velozmente com a queda intermitente,
Um forte e denso barulho ressoando na janela,
É sábado e nada acontece como se desejaria.
As nuvens aterrizam-se silenciosamente,
Tudo fica mais acinzentado e dificultando a visão,
O dia se movimentando palidamente,
É sábado e as mãos estão estagnadas.
Os automóveis rompem as ruas com barulho intenso,
Nas sarjetas escoam rios de águas imundas,
Uma galeria eclode e escoa tudo que nada mais serve pela calçada,
É sábado e o dia caminha rotineiro e extático.
Os faróis cintilantes se esconderam sem aviso prévio,
As pálpebras colhem lentamente as perdas com a inundação,
Ao redor um deserto se formou movido por uma espessa penumbra,
É sábado e os pássaros agora gorjeiam desmotivados.
Queria atravessar a ponte e não sei ao certo como fazer,
Rompida pela insensatez dos sentidos,
A linha invisível que liga um olhar ao outro,
É sábado e as horas ultrapassam o martírio da espera a inexata.
Pela cortina observo que a chuva retornou com mais força,
Fico pensando no tempo onde tudo era muito mais afetivo,
Agora o que resta de nós senão a solidão do outro,
E somente não é pior que a solidão de si.
Um jejuar involuntário sem vontade,
O sabor acre comedido do sábado,
Sem recitar nenhuma oração sabática,
A chuva permanece aqui dentro.
Segue o sábado com chuvas intercaladas,
Ora temporal, ora estiagem,
O clima instável não permanece tão diferente,
Do que veleja no interior dos pensamentos aqui dentro.
Os dias secos perfilam com raquítica pobreza,
Famélicos pelos dias de solidão e sem chão,
Recomeça a chuva pranteando lá fora,
E ao meu lado permanece o sábado atado e calado.
sábado, 29 de novembro de 2008
O Espelho Enterrado
Na imposição coercitiva da distância,
As palavras se rompem,
As pálpebras se fecham,
E os delírios da vontade ficam à deriva.
Os soldados marcham com firme alienação,
Aprumamos assim, pé ante pé,
Na fileira dos dias sem trégua,
Ao olhar para baixo, a água já passou da altura do joelho.
Que guerrilha é esta travada contra nossa história?
Na lida silenciosa contra o espelho,
Que face turva desejamos observar,
Para que(m) ansiamos nos iludir?
Por que contentarmos com parábolas de auto-ajuda?
Se não desejamos realmente nos ajudar,
Todo Amor que se afasta sem explicação,
É a vida que nunca floresce por inteiro.
Quem grita escancarado no alto da colina,
Nem sempre conquistará a benesse de ser ouvido,
Não subestime a capacidade da dor,
Ao adormecer, deixe os olhos sempre bem abertos.
Nas praças das almas esquecidas,
Quem joga milho aos pombos?
Quem atira sobre os próprios pés?
Resta então enterrar o espelho na frio madrugada.
Por que a complacência com o riso ensandecido das hienas?
Sucumbir aos caprichos carnívoros dos abutres,
Entregar o sangue com rodelas de limão aos vampiros?
Quem desiste da vida jamais se encontrará em momento algum.
Todos sabemos das pedras polvilhadas nos caminhos gelatinosos,
O suor sobre a teste denunciando o esforço atávico,
Quem quer viver com liberdade neste mundo do espetáculo,
Se nunca desejamos nos encontrar realmente?
Nossas fragilidades nos servem como inútil consolo,
Logo abrimos mão de qualquer serenidade,
Ao optar pelo lar doce lar do Inferno cotidiano,
Ninguém parece realmente levar a sério a si mesmo.
Filhos, famílias, ingratidões e pequenas mentiras sem grande importância,
Na composição dos dias de dores sem localização,
Ninguém pede salvação sem levar em conta seu próprio suicídio,
Apenas almejar um pequeno lote privativo no Paraíso.
domingo, 23 de novembro de 2008
Noite Vazia (A Saudade Nua)
E eu, e tu, / Perdidos e sós, / Amantes distantes,
Que nunca caiam as pontes entre nós.
(Pedro Abrunhosa)
Na rua por onde caminho,
Continua vaga e deserta,
A cada passo trocado na noite,
É um pensamento sem direção.
Agora começa a chover,
Deixo as gotas caírem sobre a minha cabeça,
Talvez desta maneira as coisas se esfriem um pouco,
E quem sabe amenizar os desejos agitados e intranqüilos.
Procuro aquecer minhas mãos dentro dos bolsos,
A respiração é dificultada pelo frio intenso,
Ouço alguns cães latindo erraticamente ao longe,
Que sinfonia mais esdrúxula numa noite vazia!
As vezes, tenho vontade de não mais parar,
Caminhar e caminhar firme e constantemente,
Cujo roteiro é o que meu nariz ditar,
Sem deixar pegadas ou marcas para trás.
Sinto a baixa temperatura começar a incomodar,
Não sei ao certo o que pensar ou se devo pensar algo,
A mente desafortunadamente vaga sem rumo,
E os meus pés sem chão seguem o mesmo itinerário.
Por onde cruzam as vias da vida?
Sem faróis vermelhos para interceptar o curso,
O que há além da contínua estrada?
Sinto que a sobriedade nem sempre é a melhor companhia.
A Lua ilumina com tamanha indiferença,
Como se ela não se importasse com nada ao redor,
O relato orquestrado e silencioso de minhas dores,
Que a cada noite rabisco através de alguns versos.
Com ou sem alguma quantia de álcool,
Na boca seca ou subindo à cabeça,
A noite tem um odor identificado sem muita precisão,
Mas certamente não é o aroma que almejaria sentir neste momento.
Um vento úmido bate levemente no rosto,
Ao contrário do peso da saudade despida,
Das pedras e promessas que carrego nos ombros,
Não acredito em nenhuma medalha para meu mérito.
No frio da noite queremos dizer tantas coisas,
Querer desesperadamente atingir de modo certeiro,
Os ouvidos dinamitados e mergulhados em silêncio,
E a voz permanece turva e rouca de tanto calar.
Sei que tudo conquistado foi apartado,
Todos os vestígios físicos de lembranças confiscados,
Uma sentida ausência de qualquer material tingido de sentimento,
Mas como esquecer a singularidade de um olhar cristalizado em bálsamo?
Na rua sem alma viva e onde os uivos solitários se aglutinam,
Somente meus passos trôpegos causam ruídos,
Tanto desejaria uma ponte que interligasse as distâncias,
Quem sabe assim poderia resgatar o seu coração.
sábado, 22 de novembro de 2008
Brumas Desérticas (Palavras Aprisionadas no Tempo)
As que mais causam sôfregas dores,
São aquelas registradas pela ausência,
Sem enfeitarem ou polirem os vocábulos.
Quanta ação é jogada fora,
Residindo intrinsecamente no verbo sentir,
Sensações suprimidas tão peremptoriamente,
A derrota corrosiva partilhada no vácuo.
Abro a janela e não sei o que pensar,
De uma aparência volátil com leve frescor e suavidade,
Logo vêm os pingos da chuva teimando em adentrar ao quarto,
Desfazendo toda a impressão inicial.
E aquela vontade de não sucumbir à dor?
Arquivada bem debaixo do travesseiro,
Na contabilidade do atalho narcíseo é mais fácil calar o silêncio,
Ao invés de erguer o hercúleo templo das palavras.
Lá fora não há nada: absolutamente nada!
Aqui dentro tampouco coexiste o desejo presente,
As brumas de tão densas servem para derrubarem as pontes,
E no limite, se encarregam de ocultar quem eu sou.
Seria o Destino implacável e mesquinho?
Maltrata e desarticula suas vítimas,
Relega à orfandade seus ingênuos reféns,
Resta então colocar a culpa nos deuses e suas indiferenças pagãs.
A tarde segue calada e fria em sua rotina cristalina,
O silêncio contamina o quarto como um febre terçã,
A sonoridade se emudeceu rapidamente,
E os lábios coçam na tentativa de emitir algum ruído.
Por mais que é refletida inadvertidamente,
Nenhuma idéia salta da parede com vigor,
Os fantasmas dos dias amargos batem o cartão de ponto,
A palavra castrada é a jaula hermética das incertezas.
O sono cai, o corpo desfalece e a escrita pesa,
A vida mimetiza a folha límpida do caderno,
A tinta desestimulada de registrar suas impressões,
O deserto se completa sem maiores surpresas.
Pensar e não realizar,
Pensar e nada poder atingir,
As palavras limitadas pelo papel,
As mãos aprisionadas sem ação.
Há dias que palavras e pensamentos se desvencilham,
Não se acham no mesmo espaço,
Como entidades abstratas biunívocas,
Enclausuradas em si mesmas.
Segue a vida,
Segue o corte,
Palpita o tempo,
Corrompe a liberdade.
Diante do horizonte mergulhado em sólidas nuvens,
O percurso é longo e as respostas são enigmáticas,
Com o suor salobro trilhando sobre a testa,
Na lida silenciosa pelo clarão dos seus olhos.
quarta-feira, 19 de novembro de 2008
Agonia (A Cabeça Sobre Trilhos)
O que impede-lhe de prosseguir?
As pedras na estrada ou a ponte oscilante?
O que faz-lhe recuar em seus anseios?
Nada paira impunemente sobre a mesa.
Ao longe dispara uma sirene,
Sinal de liberdade ou cárcere?
Quem joga dados no escuro,
Inevitavelmente, acaba sempre perdido.
Não brinque no meio da rua,
Nem atrapalhe os pedestres na calçada,
Tome cuidado com os veículos embriagados,
Afinal, quem garante a lucidez do volante?
Cuidado com as lâminas afiadas no meio do colchão,
Não faça da falsa tranqüilidade do labirinto sua gaiola dourada,
O martírio não precisa ser ostentado ou cultuado,
Tampouco carece recitar alguma prece no altar.
Não estabeleça o mecanicismo das metas tolas,
Não prometa o que jamais poderá cumprir,
Sem essa de colocar a culpa nos deuses,
O divino é sempre um inútil curativo para o destempero.
Aquelas mentiras jogadas ao longo do asfalto,
Tanta estupidez empilhada sob pressão,
Abaixe o volume do ego e não destile tanta prepotência,
Ninguém precisa viver bajulando a pequenez de suas vontades.
Não aponte o dedo em riste para ninguém,
Caso fizer isto, esteja sempre seguro,
Pior que a covardia de um falso delator,
É o zunir de um asqueroso mentiroso compulsivo.
Amenize seu orgulho ingênuo e teatral,
O mundo não é a imagem espectral do seu umbigo,
Não crie em demasia suas próprias míticas espectativas,
Liberte seu ego antes que seja por ele devorado.
Veja o tempo nublado e pouco afável as certezas absolutas,
Por que optar voluntariamente pelo caminho da infelicidade?
Não atropele a tudo que ainda lhe resta de esperança,
Pouco adianta entrar em desvario ao gritar contra a tempestade.
Tanto sangue evaporado pela impiedosa indiferença,
Não há ação sem causar pelo menos uma pequena dor,
Alerte os olhos e fique sabendo de um vez por todas:
Acredite, o mundo não vai acabar amanhã!
segunda-feira, 17 de novembro de 2008
O Curso dos Dias
É, minha amiga, sei que o desvelo da vida nunca é trivial,
E com tanto vigor ainda para ser sentido neste seu coração,
Vem o destino com seus debochados caprichos,
Descontrolando o ritmo do curso dos dias.
As vezes queremos logo mudar o que esta fora de lugar,
Encontrar nosso destino tão brevemente e sem pestanejar,
Com a vontade escancarada e ingênua em não sentir dor,
Porém, o desejo e a realidade nunca correm num mesmo barco.
Sei de sua coragem e da fortaleza hercúlea que carrega consigo,
E, sem dúvida, isto lhe trará sempre a iminente superação,
Invocando a presença de sua força, nunca deixará que o corpo canse,
E tampouco sentirá as coisas marejarem em vão.
Que o seu caminho seja trilhado com seus pés firmes ao solo,
Resgatando toda aquela sua alegria merecida,
Que possa ser resumida no esboço de seus lábios,
E nos afagos acalentadores dos seus filhos.
Ah, e nem pense em culpar a esfinge de Deus,
Sabe como é, tanta coisa para se tomar conta,
É verdade que Ele tem seus momentos longos de relapso,
Talvez Ele esteja apenas cochilando com o sensor de alerta desligado.
Mas nada disto vai lhe causar algum desânimo,
Sua magnitude pueril é maior que os desafios impostos,
Tão breve correrá novamente sobre o asfalto e folhas secas,
Pisando consistente em seus exercícios cotidianos.
Sei que as vezes bate um tédio sobre o colchão,
Isto é tão normal para quem é bordado com tecido humano,
Quem é que nunca sentiu um certo cansaço na vida?
Lembre-se que com a cabeça altiva você nunca deixará de ser vencedora.
Olhe por tantos desafios por onde já andou e superou,
Sem entregar os pontos ou dar bola para fantasmas,
Sem esmorecer os olhos e não dobrar os joelhos,
Toda a luz acompanhará o caminho do seu esforço.
Com sorrateira surpresa, quantas vezes a vida nos deixou ao chão?
De repente surge o inesperado: gostosuras ou travessuras?
Ninguém sabe com alguma razão a trajetória do desenlace cotidiano.
Seja sempre a mesma mulher combativa sem perder a doçura íntima do coração.
Esteja certa que mais dias ou menos dias,
Os momentos de olhos em claro cessarão,
E da instabilidade aflita de suas mãos buscando alívio,
Brotará a Paz iluminada que inundará o seu peito de tranqüilidade.
domingo, 16 de novembro de 2008
Amores (I)miscíveis (As Metades Presentes)
A rua de lá,
Não é a mesma de cá,
Lá se encontra o meu desejo,
Cá estagna a presente ausência.
Lá e cá,
Divididos por uma muralha chinesa,
Tão perto e tão eqüidistante,
Unidos por um vazio silencioso.
Lá não sei ao certo onde você está,
Cá estou sem saber do chão onde me encontro,
Brumas pousaram densamente sobre nossas cabeças,
Lá e cá onde tudo se turva em desvairado nevoeiro.
Lá é mais fácil de sustentar a ilusória auto-preservação,
Cá não há júbilo para tanta insípida opressão,
A vida caminhando moribunda em cima do muro,
Lá e cá são faces porosas da mesma latência.
Lá está o frio que seu corpo finge não sentir,
Cá está congelando ao som da melodia de Piaf,
O pouco Sol não é suficiente para ninguém,
Vem a chuva a encharcar a todos nós.
Lá definitivamente não é anil,
Cá perdeu as cores há muito tempo,
Cinza dá o tom da reentrância dos meus pensamentos,
Lá e cá perderam as caixas de lápis com grafites coloridos.
Lá pensa que pode ignorar a dor,
Cá sobrevive apesar da dor,
Atávicos sobre mundos em procissão,
Lá e cá reinam insólitos na inútil autofagia.
Lá os lábios foram voluntariamente aprisionados,
Cá o cárcere se tornou um indescritível jazigo,
Julgamento sumário sem ressalvas para a defesa,
Lá e cá no calabouço que fragmenta qualquer vida.
Lá os olhos se fecharam,
Cá os dedos não alcançaram o topo da muralha,
No silêncio onde todos se afogam,
Lá e cá vagam sem mirarem algum rumo.
Por que não sai daí,
E vem para o lado de cá?
Se os sonhos que estão aí,
Forem semelhantes aos ensejos palpitantes aqui.
Lá pode ter a frieza de algum jardim adormecido,
Cá é onde se encontram todas as flores para ornamentá-lo,
Os caminhos se cruzam no eixo de duas vidas,
Lá e cá são amálgamas de um curso pautado sob as luzes de duas rotas.
Lá é possível maltratar os dias,
Cá responde à isto com tristeza,
Quem ganha no corte fino da angústia?
Cabe ao tempo responder sobre a enfermidade das metades.
quinta-feira, 13 de novembro de 2008
A Distância do Sol
A distância quando aperta é um corte na derme,
A incomunicabilidade patente que ensurdece,
Sem saber de algum paradeiro cotidiano,
Os olhos são limitados pela extensão da ausência.
Despertar e sentir a longevidade da dor sem teurgias,
A devassa escuridão ausente nos lábios que outrora sentia,
A cama vazia e o silêncio do telefone,
Sentado à beira da cama e não saber sobre o seu dia.
Herdar o malogro dos lábios selados com uma cruel severidade,
Levantar com tibiez do leito e caminhar pela casa,
No banho, os pensamentos saltam assimetricamente,
O café se torna mais amargo do que em outros tempos.
O Sol desanimadamente ascende ao céu,
Irradiando alguma iluminação ao redor,
Entretanto as questões que empilham na mente,
Não encontram as respostas tanto ansiadas.
Os dias transcorrem transitando com esparso ânimo,
Os quilômetros exauridos que afasta a suavidade do desejo,
O rio de liberdade lacrada que silencia os vocábulos,
O Sol que não aquece as mão em gelo.
Buscar em vão atravessar todo este oceano,
Mãos ornamentadas por algemas insalubres,
O que dizer quando o silêncio domina a atmosfera?
Não há bola de cristal para desvendar os olhos vendados.
O Sol transpassa a distância sem a sua presença no meio do caminho,
As horas fragmentadas e circulantes dos ponteiros do relógio,
O desaparecimento tácito da boca levemente umedecida,
Escrevinhar os ecos uivantes dos ventos em blocos de rascunho.
O tolo veranico que abafa os dias e não deixa a alma respirar,
O trânsito que enfileira automotores e azucrina os ouvidos,
Não há caminho certo para a alça dos dias e a sofreguidão das noites,
E os olhos permanecem estáticos sem a oportunidade do desvelo.
Há sementes pálidas germinando de saudade nua,
Que foram polvilhadas no solo salgado da deserção,
Do alto, o Sol com a sua indiferença motriz aquece a terra insípida,
Florescem pétalas caídas sobre o porta-retrato ao longo dos dias calados.
A árdua ambivalência de lidar com a conformidade,
A incapacidade de não saber e não tocar na tez amada,
Não existem palavras que exalem com exatidão tantas sensações,
E ao final da tarde, não há Sol que minimize uma severa saudade.
domingo, 9 de novembro de 2008
Desesperadamente Amor
A noite era uma nuvem negra,
Que adentrava sorrateira em seu quarto,
Outrora onde tudo que era vida,
Tudo parecia ser consumido sem clemência.
Ela estava sentada no meio de sua cama,
Esvaziada com seus poucos pertences,
Com suas pequeninas pernas encolhidas,
O medo congelava seu desesperado coração.
Os cabelos de menina encobriam seus cintilantes olhos,
Suas mãos curtas escondiam suas pálpebras,
Os lábios finos se uniam como se tivessem costurados à mão,
Desarticulado, seu franzino corpo tremia incessantemente.
Com a chuva torrencial que assolava o céu,
E o frio intermitente que batia à sua janela,
Ela se encolhia cada vez mais como um simples caracol,
E dois longos filetes de lágrimas brotaram sobre seu rosto.
Na medida em que a tempestade se intensificava,
Alguns trovões estremeciam o quarto,
Relâmpagos aperiódicos iluminavam o recinto,
E aquele pavor que subia do estômago à boca.
Suscitando vagas lembranças, ela conduziu seus pequenos dedos,
Circundando levemente algumas feridas ainda doloridas,
Desde a última vez que aquele homem brincou com o seu corpo,
Na tentativa inútil de fugir dos carinhos de intimidade sem nenhuma graça.
Queria gritar com o que ainda restava de ar confinado em seus pulmões,
Porém, a atávica angústia preenchia seus cansados olhos,
Queria fazer algum barulho para chamar a atenção de alguém,
Com os dedos petrificados era improvável qualquer saída.
O vento uivava parecendo clamar pela mãe,
Mas qual mãe se nunca tinha visto seu vulto pela frente?
O pai era uma mera abstração simbólica de sua mente,
Ela se sentia a solidão encarcerada em si mesma.
Mais uma ensurdecedora trovoada,
A menina se agarrava desesperadamente à seu bicho de trapos,
Como se fosse a mão de sua tão sonhada proteção materna.
Que certamente acalmaria suas ansiedades pueris.
Sozinha naquele quarto úmido e escuro,
Nem mesmo atormentados fantasmas a visitavam,
Um resto de sopa permanecia num prato assentado sobre a cômoda,
E um pedaço de pão com três pequenas mordidas.
Desesperadamente ela queria ser protegida,
Ser tratada ao menos com algumas gotas de atenção,
Não tinha muita idéia do que era tudo aquilo,
No fundo, ela somente queria que seus ossos não tremessem tanto.
Ninguém sabia quem era aquela criança ou como chegou até ali,
Tampouco o nome de batismo ou endereço conhecido,
Lá estava ela esperando alguém reclamar a sua existência,
Era mais uma alma lançada no meio da hostilidade do mundo.
sexta-feira, 7 de novembro de 2008
Ouro do Tolo
O homem é o que não é o que é, e que é o que não é. (Hegel)
A cada passo que dou,
Dentro da solitude que me acompanha,
Nem sei mais ao certo,
Desembrulhar ou não alguma razão.
Dentro das premissas do bom convívio,
Das articulações estéreis do mundo das aparências,
Nada é mais medíocre, falido ou patético,
Arregimentar vaidades corrosivas e imaturas.
Descartando a preferência pela avenida das futilidades,
Destilo meu asco pela simplificação do senso comum,
Reluto em não martelar a insatisfação imediata do ego,
Procuro não deixar seduzir pelas quimeras banalidades narcíseas.
Não cultivo cobaias em laboratório,
Tampouco conduzo experiências de ventríloquo,
Não quero ser a voz da obviedade filantrópica,
Não chuto a canela alheia e não dou carrinhos futebolísticos.
Ser e nunca ser o que jamais desejei,
Não balbuciar arrogância premeditada dos abutres,
Sem crivar os olhos em boçalidades estúpidas,
Não deserdar do campo de batalha e não deixar os corpos sucumbirem em vão .
Não quero me hospedar em asilos,
No jazigo do breve fim dos meus líquidos dias,
Detesto comida pré-fabricada em latas galvanizadas,
Não coleciono o silêncio dos sentimentos em potes de margarina.
Não faço coro com os que se iludem com o tesouro no final do arco-íris.
Não me convence a estrada dos banguelos sorrisos amarelos,
Não ajudo a conduzir a alma alheia pela alça do sepulcro,
Não levo a vela para a vigília em soturnos cemitérios.
Entre derrotas sacrificadas e minguadas vitórias,
Procuro ir um pouco além do que é possível ser,
Talvez esboçar algum pálido riso e se acostumar a ouvir o eco do vácuo,
Na divergência dos constantes sonos intranqüilos.
Não acredito na eclosão de revoluções,
Herdadas pelas cretinices dos que miram para o próprio umbigo,
Não acredito em marionetes ditando normas,
Tampouco sacio minha sede em sangue alheio.
Entre chuvas torrenciais e noites escuras,
Na solidão dos meus passos e o clarão ébrio da lua,
Sigo o que ainda consigo acreditar,
Sem desejar morrer voluntariamente pelo ouro dos tolos.
terça-feira, 4 de novembro de 2008
Hostil Primavera
A sensação térmica castiga os lábios,
Busco aquecer em vão meus dedos,
A Primavera hostil vai bem além do registro dos termômetros.
Os automóveis trafegam com moderado barulho,
Um som tão abafado quanto disperso,
As folhas do calendário vão sendo trocadas,
Debaixo dos escombros resiste a saudade intacta.
Alguns pássaros tomam coragem e entoam um canto triste,
Parece um ruído indescritível de lamento,
Talvez sintam a tristeza dos olhos levados pela maré,
Quem sabe o que se passa dentro de um coração?
Ninguém tem tanta certeza,
A ponto de afirmar com exatidão,
Não basta tarô ou quiromancia,
Pouco adianta para desvelar um violento silêncio sem temperamento.
Uns acreditam nas Escrituras,
Outros se apegam ao crucifixo,
Não sei à esta altura o que é certo ou errado,
A vida tem uma razoabilidade manca e torpe.
Seria mais fácil viver dentro de um amorfo script,
Fingir um burocrático sorriso e distribuir gélidos abraços,
É bem mais simples fragmentar o espelho,
Melhor seria sete anos de azar à mergulhar dentro de si?
O que deve ser dito diante do demônio,
Dentro das profundezas de nós mesmos,
Quais mentiras devem ser suscitadas,
A inútil avidez para preservar a alma da danação.
Não há frio que resista à ansiedade,
Ela cresce e toma um espaço monumental na garganta,
O grito não ecoa e as palavras ficam limitadas pelo papel,
Queria poder com meus dedos sentir a sua face.
No quarto alguns papéis viram recordações,
Uma canção de acordes simples substitui o vazio,
A Paz relutante sem encontrar morada,
Segue o caminho da batalha no campo de invisível algodoeiro.
Na Primavera de flores despetaladas,
Sobrevivendo sob o fogo cruzado da tortura silenciosa,
Quem caminha à passos miúdos de peito aberto,
Estará sempre correndo o risco da sentimental inanição.
domingo, 2 de novembro de 2008
Dores Febris
No alvorecer monocromático das horas,
Estaciono meus pensamentos em qualquer lugar,
Linhas transversais que não ligam rotas exatas,
Apenas à pulsares impulsivo no tempo.
Queria mais,
Queria ir bem além,
Além de tudo o que poderia ser,
Transmutar a distância em afeto.
Deixar tudo o que causa dor e desconforto de lado,
Afastar tudo o que mareja e enrijece a solidão,
Romper tudo o que polvilha medo e ansiedade,
E talvez assim trazer você para o meu encontro.
Atravessar rios e pontes,
Cruzar avenidas e ruas movimentadas,
Escalar montanhas ou arranha-céus de egos burgueses,
E atingir no âmago o anseio lacrado no peito.
Não zelar por tantos equívocos,
Não maltratar a verdade,
Não ser categórico com a fluidez do esvaziamento,
O Paraíso não vai muito além de nossas mãos.
O vício que nos cerca sem rumores,
A bomba que explode com dois feridos,
As marcas expostas como quadros do MASP,
O roubo da Paz como obras afanadas da pinacoteca.
Não há motivos para tanto desenlace,
Não há sangue para tanta cólera,
Não há caminho plausível sem paixão indolor,
Cintilam as dores do parto e as dores febris.
A sintonia viva no silêncio abissal,
Ambivalência nunca esquecida,
Lábios formigando com desejo inflexível,
O pulso oscilando a palpitação sem a completa entrega.
O sorriso moribundo,
A lágrima sufocada,
A palavra banida,
A angústia reinante.
Melhor negar à dizer a verdade?
Quando o tapete encobre todas as incertezas,
Aceitar tudo contemplativamente estéril,
É assinalar que a vida é uma mera esteira fleumática da linha de produção.