Fear can stop you loving
Love can stop your fear
("Fear and love", Morcheeba)
Quatro da manhã e parte da cidade adormece,
E o que resta dos seus seres viventes perambulam por aí,
Sejam entorpecidos de venenos injetáveis ou inaláveis,
Ou presos a alguma cama de sexo fortuitamente sem significado.
Poucos carros trafegam e disparam barulhos que rompem o silêncio,
Latas vazias e garrafas quebradas espalham seus cacos pelo chão,
Risos histriônicos e descontrolados exalados pelo ar alcoolizado,
Toda normalidade é pré-fabricada e nada parece realmente verdadeiro.
Todos querem acreditar na infância ingênua da noite,
Poucos entendem que até a Lua fica reservada diante de tanta perplexidade,
O desespero pela ânsia de diversão efêmera e o chiclete castigado pelos dentes,
Bocas desunidas implorando para serem embriagadas sem perda de oportunidade.
Diálogo fast-food e pseudo-amores narcíseos fragmentados,
Liberdade desvairada à conta-gotas,
O frenesi pulsante da absoluta velocidade para o vácuo,
Pé no acelerador descendo a correnteza das emoções de prateleiras de supermercado.
A madrugada é fria e não consigo aquecer minhas mãos,
Caminho a passos breves com a brisa gélida batendo na face,
O pensamento não consegue se desligar com naturalidade,
Somente seu semblante ronda constante à minha mente.
A cidade não traz receio ou surpresa alguma aos meus olhos,
Mas fico a imaginar os monstros escondidos em pacatos sorrisos,
Daqueles que se aproximam com benesses banais e acéfala filosofia de botequim,
E até o início do amanhecer, arrancarão até a última gota de sua presa.
Os homens não são totalmente vilões ou inocentes,
Até mesmo as aberrações cromossômicas merecem alguma piedade,
Mas na noite que enjaula e oprime as vítimas silenciosas,
Quase todos os sortilégios de maldade correm em olhares de falsa bondade.
Quantas pessoas fecham seus olhos de solidão na noite escura?
Tantas outras disseminam lágrimas secas escoltadas por um vazio incomensurável?
Umas fugindo com medo de acreditarem na possibilidade do Amor,
Outras se apegando a quaisquer gracejos torpes de fúteis sentimentalidades.
Ninguém parece desejar acordar de seus pesadelos mais profundos,
Melhor virar para o outro lado e ouvir o descartável ronco do falo desconhecido,
Muitas vezes o travesseiro encharcado já não faz mais a mesma companhia,
Cruzam-se os dedos para que a noite termine o mais depressa possível.
Uns tiram as vestes como se despissem para os chuveiros de pesticidas,
Outros apostam que o gozo líquido é o passaporte para a liberdade sem vontade,
Adentram-se ao quarto impregnado de perfume barato como se fosse a doce catedral de Auschwitz,
Quem realmente acreditar em amores de liquidação?
Se a vida é dura, melhor contar mentiras perfeitas diante do espelho?
Sorrir sempre amarelo mesmo que tudo esteja desabando no horizonte?
Afinal, quem vai ligar para a vida alheia no mar de tamanha indiferença?
Talvez sejamos quase todos antropófagos numa cidade de concreto sem alma.
No caminho, se apegar ao auto-engano... E mentir subterraneamente tanto,
Quem sabe, tanta mentira para si possa virar algum sinônimo de verdade,
Ansiando que a dor seja apenas uma mera alegoria poética,
Pra quê viver sem âncoras se inevitavelmente todos irão naufragar no final da luz?
Que tipo de sobrevivência regurgitará dentro das alcovas?
Quanto sangue alastrado no interior das paredes de concreto armado?
Quem ousará ascender à cabeça e se libertar de si mesmo?
Tudo é rotina na previsibilidade inútil dos dias sem significação.
Atrás da porta e diante do espelho,
Poucos têm coragem de olhar a própria face,
Maquiagem borrada, cabelo despenteado ou olhos de sofreguidão e cansaço,
Quem realmente quer ser livre para defrontar com as próprias angústias interiores?