domingo, 31 de agosto de 2008

Através do Espelho (Verdades Veladas, Mentiras Perfeitas)


Fear can stop you loving
Love can stop your fear

("Fear and love", Morcheeba)


Quatro da manhã e parte da cidade adormece,
E o que resta dos seus seres viventes perambulam por aí,
Sejam entorpecidos de venenos injetáveis ou inaláveis,
Ou presos a alguma cama de sexo fortuitamente sem significado.


Poucos carros trafegam e disparam barulhos que rompem o silêncio,
Latas vazias e garrafas quebradas espalham seus cacos pelo chão,
Risos histriônicos e descontrolados exalados pelo ar alcoolizado,
Toda normalidade é pré-fabricada e nada parece realmente verdadeiro.


Todos querem acreditar na infância ingênua da noite,
Poucos entendem que até a Lua fica reservada diante de tanta perplexidade,
O desespero pela ânsia de diversão efêmera e o chiclete castigado pelos dentes,
Bocas desunidas implorando para serem embriagadas sem perda de oportunidade.


Diálogo fast-food e pseudo-amores narcíseos fragmentados,
Liberdade desvairada à conta-gotas,
O frenesi pulsante da absoluta velocidade para o vácuo,
Pé no acelerador descendo a correnteza das emoções de prateleiras de supermercado.


A madrugada é fria e não consigo aquecer minhas mãos,
Caminho a passos breves com a brisa gélida batendo na face,
O pensamento não consegue se desligar com naturalidade,
Somente seu semblante ronda constante à minha mente.


A cidade não traz receio ou surpresa alguma aos meus olhos,
Mas fico a imaginar os monstros escondidos em pacatos sorrisos,
Daqueles que se aproximam com benesses banais e acéfala filosofia de botequim,
E até o início do amanhecer, arrancarão até a última gota de sua presa.


Os homens não são totalmente vilões ou inocentes,
Até mesmo as aberrações cromossômicas merecem alguma piedade,
Mas na noite que enjaula e oprime as vítimas silenciosas,
Quase todos os sortilégios de maldade correm em olhares de falsa bondade.


Quantas pessoas fecham seus olhos de solidão na noite escura?
Tantas outras disseminam lágrimas secas escoltadas por um vazio incomensurável?
Umas fugindo com medo de acreditarem na possibilidade do Amor,
Outras se apegando a quaisquer gracejos torpes de fúteis sentimentalidades.


Ninguém parece desejar acordar de seus pesadelos mais profundos,
Melhor virar para o outro lado e ouvir o descartável ronco do falo desconhecido,
Muitas vezes o travesseiro encharcado já não faz mais a mesma companhia,
Cruzam-se os dedos para que a noite termine o mais depressa possível.


Uns tiram as vestes como se despissem para os chuveiros de pesticidas,
Outros apostam que o gozo líquido é o passaporte para a liberdade sem vontade,
Adentram-se ao quarto impregnado de perfume barato como se fosse a doce catedral de Auschwitz,
Quem realmente acreditar em amores de liquidação?


Se a vida é dura, melhor contar mentiras perfeitas diante do espelho?
Sorrir sempre amarelo mesmo que tudo esteja desabando no horizonte?
Afinal, quem vai ligar para a vida alheia no mar de tamanha indiferença?
Talvez sejamos quase todos antropófagos numa cidade de concreto sem alma.


No caminho, se apegar ao auto-engano... E mentir subterraneamente tanto,
Quem sabe, tanta mentira para si possa virar algum sinônimo de verdade,
Ansiando que a dor seja apenas uma mera alegoria poética,
Pra quê viver sem âncoras se inevitavelmente todos irão naufragar no final da luz?


Que tipo de sobrevivência regurgitará dentro das alcovas?
Quanto sangue alastrado no interior das paredes de concreto armado?
Quem ousará ascender à cabeça e se libertar de si mesmo?
Tudo é rotina na previsibilidade inútil dos dias sem significação.


Atrás da porta e diante do espelho,
Poucos têm coragem de olhar a própria face,
Maquiagem borrada, cabelo despenteado ou olhos de sofreguidão e cansaço,
Quem realmente quer ser livre para defrontar com as próprias angústias interiores?

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Arame Farpado (Para Não Cair no Vazio)


Era uma vez, sem nenhuma solidez,
Uma estrada quase esquecida chamada Felicidade,
Uns diziam que não chegava a lugar nenhum,
Outros diziam que era o único caminho para alguma coisa.


Muitos tentaram descobrir sua trilha e não entenderam absolutamente nada,
Outros burlaram tudo o que era possível para esconder suas pistas,
Para os poucos sobreviventes que decifraram o trajeto,
Sabem que a tal via não é nada trivial.


Muitos julgaram a Felicidade um como mito a ser esquecido,
Outros predestinaram suas vidas a desbravar seu leito sem medo do perigo,
E no rol das confissões, eu mesmo na minha tenra infância,
Acreditava que tal caminho iniciaria no fundo do quintal de casa.


Quem me dera sem demora,
Tomar emprestado o tentador mapa deste caminho sinuoso,
Seja rabiscado num papel de pão ou monitorado num GPS,
Algo que indique com alguma silhueta onde eu possa firmar meus pés.


Há tantos percursos por onde adoramos nos iludir na vida,
Se enroscar com relacionamentos fúteis, sexo banal ou ansiedades descartáveis,
Rotas prévias sem sinais de vida ou inevitavelmente mergulhadas em prantos,
Peregrinar com um saco de papel na cabeça e não chegar à parte alguma.


Quando meu pai disse: “Filho, vai ser homem na vida!”,
Pensava que ser homem era ser mais um no rebanho,
Mas na verdade, percebi que é preciso ir muito mais além,
Sem cair nas premissas dos lugares-comuns e sem os cacoetes apodrecidos da existência.


Ser decidido e buscar encontrar reunir os fragmentados vestígios,
Desvencilhado dos grilhões de arame farpado atados nas mãos e olhos bem libertos,
É preciso subir sempre mais alto e olhando tranquilamente para os lados,
Sem fazer concessões aos espectros e os medos mais indeléveis.


Há tanta gente com receio de se deparar com a Felicidade,
Talvez seja a inquietação quando de repente encontrar o seu caminho: E o quê fazer então?
A dor visceral é sempre muito mais fácil de administrar,
É gritar e gritar aturdidamente no fundo silencioso do quarto vazio.


A Felicidade não sucumbe aos fúteis egoísmos,
Tampouco se nutre de sentimentos pequenos e mesquinhos,
São águas calmas e generosas que beiram à praia e fazem-nos mais leves,
E por que estaríamos sozinhos num momento como este?


Nunca renunciar a idéia das vias de liberdade,
Nunca assassinar a esperança ainda latente no peito,
E acender velas no crematório das angústias,
A Felicidade deverá ser uma via mais simples e menos indolor.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Quadrilátero


O que há detrás daquele muro?
Quais são os segredos lacrados confinados na muralha?
Não quero paredes nos isolando,
Quero pontes nos comunicando.


Todos os segredos foram feitos para serem desvelados,
Todas as intrigas foram criadas para serem desmascaradas,
Todas as barreiras foram impostas para serem superadas,
Alguém poderá fugir da batalha?


A garganta seca de tanto gritar,
A palavra refeita de tanto recitar,
O gesto propagado de tanto acenar,
A lágrima deslizada de tanto esperar.


Tudo quase sempre feito agora,
Tudo quase sempre escondido na memória,
Tudo quase sempre sufocado sem glória,
O que faz tirar o seu sono?


As contas a pagar,
As dores a zelar,
O Amor a ressuscitar,
A vida a ansiar?


O muro que desloca a naturalidade,
Afasta o que foi feito para ser unido,
Separar em vísceras a alegria da tristeza,
Um soerguimento voluntário em pedras sem piedade.


Ardemos dias gotejando sangue imperecível,
A preferência pelas feridas subcutâneas ao perfume na superfície,
Como se um veneno tivesse sido injetado contra a razão,
Em silêncio, corroendo efusivamente o vazio.


Cada um de nós oculta dentro de si o próprio Inferno,
É lá onde residem às angústias e o mundo que não nunca ansiamos reconhecer,
Quando não queremos nos encontrar consigo mesmo,
No quadrilátero inverossímil que afasta o self e o mundo real.


Às vezes, a poesia parece se tornar insuficiente,
Para fazer brilhar um pouco mais as estrelas da sua constelação,
Quem poderá acreditar nas palavras,
Quando se julga à revelia que tudo estará perdido?


A noite que vem e passa,
A madrugada que chega e ameaça,
O vendaval que esfria e descalça,
Os pés espoliados pelos espinhos espalhados pelo caminho.


No suor que vêm à testa,
Fico a imaginar os motivos de tão longas barreiras,
Às vezes, parece até que deseja atingir as nuvens,
Não seria mais afável chegar à estratosfera com o calor de um sincero beijo?


Nenhum homem é tão forte a ponto de salvar um planeta,
Talvez possa salvar algumas vidas ou apenas uma única existência,
Não existe cansaço no combate e não haverá perdedores,
A derrota só prevalecerá quando desistimos de não mais viver.


Todas as grandezas materiais serão reduzidas a uma mísera poeira cinzenta,
Da vida nada levamos exceto as lembranças e os bons sentimentos conservados,
Nada é tão importante quanto um largo sorriso afetuoso,
Do filho, do Amor e de tudo que possamos carregar com o máximo prazer.


Não há caminhos asfaltados e tampouco atalhos confiáveis,
Não há muros que não sejam impossíveis de serem escalados,
Quando existe a substancial grandeza fluindo pela alma,
Nenhuma fria muralha haverá de aprisionar um atávico desejo.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vertigens Interiores



Pé na estrada e sigo viagem,
Luzes erráticas escorrendo pelo caminho,
Deixo para trás meu recinto e tudo pelo que eu tenho amor,
E carregando sempre comigo a lembrança dos seus olhos.


A cada partida da cidade natal,
Adentro no interior dos meus sentidos,
Pensamentos e inquietações vagando,
Tentativa absoluta de resgatar a outrora Paz extraviada.


As janelas impregnadas de luar e orvalho,
A umidade se faz bem presente,
Na superfície do vidro, cada gota desliza como um rio flamejante,
O ar-condicionado transforma tudo ao redor na sucursal da Antártida.


A atmosfera fria aqui dentro e as cidades ao longe,
Aparecem e sucumbem como pequenos grânulos de luzes,
A noite é como um manto enegrecido,
Em volta, tudo é um grande e lacônico vácuo.


A saudade gira com o desenrolar dos pneus do veículo,
Uma brevíssima parada numa pequena cidade.
Passageiros se aceleram para uma fugaz alimentação,
Luzes e áudio fazem que apressem seus passos e não atrasar o trajeto.


Manhã de Marília,
A cidade se levanta preguiçosa,
Como um dia de feriado,
Em plena segunda-feira morna!


Ruas largas e esvaziadas,
Caminho pela calçada praticamente deserta,
A cidade que demora a acordar,
Tudo é mais lento, leve e tranqüilo.


Todavia esse bucolismo é apenas um disfarce,
Bem presente e latente no meu peito,
Até seguir abrigado no terminal de ônibus do lugar,
Um misto de nostalgia e fúnebre memória do passado local.


Por todos os lados e em cada canto,
A impressão do improvável,
Desejaria tudo para que fosse possível compor a paisagem,
Com um breve relance do seu furtivo olhar.


Por onde andam e seguem seus passos longe dos meus,
Não há nada que possa apagar,
Sentimentos atávicos de saudade,
Rastilho de lembranças tão presentes.


No interior ou na capital,
Que a tranqüila possa lhe encontrar,
Se de repente sentir encantada com um simples relance,
É o meu desejo buscando delicadamente lhe afagar.


Quais são as coisas e as palavras,
Que possam fazer colorir a Primavera do seu jardim,
Quais são os dias e as noites,
Que possam dar-lhe um pouco mais de proteção?


Há coisas tão fundamentais na vida,
De tantos sentidos amargos preferimos então fingir,
Desde então desejaria desveladamente aos Céus,
De poder chegar perto e sentir o seu abraço.


A cada partida uma lembrança sentida,
A cada chegada uma ausência inalterável,
Na cidade que ficou para trás,
Na rádio uma canção ecoa muito além das palavras.


A noite envolve a discreta cidade,
De volta à rodoviária e pronto para outra partida,

My way ecoa solenemente por todos os lugares,
Dia sim, dia não e as palavras são conduzidas interiormente no coração.


(Marília, 25 de agosto de 2008)


domingo, 24 de agosto de 2008

Mar Adentro


Mais uma madrugada e o silêncio permanece,
Fico observando a luz dependurada no teto,
O telefone que teima em não tocar,
E as palavras continuam todas amotinadas.


Na boca, a sensação tácita da ausência,
Os seus lábios que se esconderam,
Como se corressem com as marés,
Longe do alcance das minhas mãos.


E o que fazer quando seu olhar se oculta?
A alegria se torna seca como o ar,
A manhã clareia lentamente sem graça alguma,
E a vida chamando para se compartilhada.


Mar salgado que tanto salga a praia que se encontra deserta,
Ardem os olhos de tanta salinidade em dias marejados de desencanto,
Se soubesse o quanto desatina a saudade absoluta no meu peito,
Não velejaria para tão longe assim.


É tão difícil navegar na solidão do alto mar,
Tanto tempo sem tocar em seus lábios,
Seus olhos são faróis pelos quais despertam meu sono,
Minha flor do Lácio que tanto desejo enlaçar em meus braços.


Atiro garrafas com mensagens no imenso mar simbólico ao meu redor,
Com a esperança que uma delas chegue até suas suaves mãos,
Algum sinal que possa cristalizar em seus olhos,
A saudade que transborda no coração.


Busco no refluxo das palavras e a troca de passos no meio da praia,
A medida mais correta que possa banhar seus olhos,
Ver o quanto é possível sentir o horizonte,
Muito maior que nossas tolas veleidades.


Os dias podem ser mais difíceis,
Também podem ser mais cansativos,
Mas nada pode ser mais árido,
Do que o naufrágio da Paixão.


A doçura dos seus olhos que eu bem já conheço,
Também as ansiedades do seu coração,
Nada é novidade para mim,
Que tantas vezes foram sentidas à flor da pele.


Das dores, das flores, dos lábios,
Na noite escura e a vontade de velar seu corpo adormecido,
Nada pode ser tão ruim assim ou tão profundo que não possa emergir,
Quando a distância é uma árdua fenda oceânica.


Queria transformar seus dias mareados,
Em eternos momentos de belos sorrisos,
Mas sei que isto nem sempre é possível,
Porém ofereço minhas mãos para ampararem suas angústias.


No mar velejando de ausências,
Qual a correnteza com a força propulsora,
Que possa conduzi-la com segurança,
Na ilha secreta ostentada pelos seus olhos?


Num oceano de tormentas e adversidade atípicas,
Na imensidão eqüidistante entre o seu e do meu quarto,
Os presságios de saudade compõem triste melodia,
O silêncio do mar é a sinfonia dos dias em claro.


E assim os dias se arrastam tão calados,
Meu trabalho, seu trabalho, nosso cotidiano insólito,
Seguindo uma insípida toada recitada ao pé do ouvido,
Eu aqui, você aí e o mundo lá fora.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Ourivesaria


Abro uma fresta na janela,
Um pouco da branda claridade adentra ao quarto,
Passa das seis e esqueço as horas,
Uma leve e fria brisa amplia-se em toda a volta.


Alguns peregrinos pássaros cantam ao longe,
A cidade começa a renascer,
Mais uma madrugada já ficou para trás,
E uma pilha de papéis ocupa o pensamento.


Acho que não quero compor um poema de Amor,
Não desejo aquelas rimas fáceis que colam mecanicamente umas nas outras,
Busco inspiração na luminosidade que se alastra em todo o recinto,
Seria tão aprazível uma composição mágica entre meus dedos.


Para o desconforto, não existe a tal magia e escrever é uma tarefa árdua,
Na inglória batalha do pavor de nunca encontrar o final do túnel,
Parte-se do pressuposto que alguma coisa será digerida,
Afinal, quem sabe previamente qual será o impacto das palavras?


De uma noite insone ao ardor dos olhos,
Visão desatenta para uma pilha de livros,
Somente desejaria observar um porta-retrato,
E pudesse sentir ao menos por um momento aquele inigualável sorriso.


Todo escritor é vulnerável às palavras e cúmplice dos sentidos,
Lapidar os vocábulos como se fossem pequenos diamantes,
Uma hercúlea tentativa de adornar seus olhos,
Com as palavras mais harmônicas e precisas que possam acalentar sua alma.


Daria uma gota de suor para cada tênue palavra,
Lentamente límpida e precisamente lustrada,
Erguida gentilmente pelas minhas próprias mãos,
E delicadamente ser entregue entre os seus dedos.


Bordar tantas palavras é guerrear numa luta vã,
Já dizia o poeta Drummond... (E com razão!),
Como prometer um mítico acesso ao Paraíso,
Se o que apenas faço é rabiscar transcritos do coração?


Tantas criaturas verbalizam palavras sem nexo,
É tão simples regurgitarem promessas fáceis que mal seduzem uma meretriz,
Políticos, juízes, famintos abutres e toda horda de cafajestes,
Quem se responsabiliza pelo que diz?


A palavra posta no papel pode ser aquela enjaulada na alma,
Delineada com leveza por um lápis ou composta pelo olhar,
Poderá descrever com suavidade um sentimento aturdido,
Um esboço quase autofágico do verbete “saudade”.


Trocaria todas as palavras,
Por um verdadeiro e áureo vocábulo,
Que colhesse cada lágrima delineada em sua face,
E quem sabe assim pudesse sentir o calor que emana do meu peito.


Tantas palavras compactadas na boca que adorariam voar pelos ares,
Outras tantas palavras transcritas à tinta ou algum pedaço de giz,
Quantos vocábulos ainda seriam necessários invocar,
Na tradução mais perfeita para os seus olhos da palavra Amor?

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Escafandro (O Tempo à Flor da Pele)


O que é o Tempo e como ele pode ser o que é?
Observando a locomoção dos ponteiros na parede,
É difícil encontrar uma resposta que amenize,
A angústia presente em cada momento.


Quem nunca teve aquela maldita sensação,
Que o Tempo está tão curto e nada vai adiantar,
Correndo com aflição de um lado para outro,
Não sabendo por quanto Tempo e por quê?


A areia da ampulheta desliza com lentidão,
Como se gradativamente perfurasse com perversão o peito,
Um tic-tac tão sinistro quanto às gargalhadas de um torpe palhaço,
Nenhum cavalheiro consegue desvencilhar tão facilmente diante das trevas.


O Tempo que só existe em nossos sentidos,
Que reina absoluto no vácuo libertário do espaço,
Quem sou eu perante a Via Láctea?
Somos nada, exceto um polvilhar de poeira cósmica.


E como grânulos saltitantes entre o limbo e o caos,
Recolhemos nossos fragmentos sem exatidão,
Sete da manhã e a noite inteira recolhendo pensamentos,
O Tempo que escorre é o mesmo que sangra.


Dizem que há Tempo para tudo,
Um presságio de uma metáfora mais otimista?
Alguém pode responder quanto tempo resta de vida?
É uma realidade bem mais latente e imprevisível.


A brevidade do Tempo,
O curto-circuito das horas,
Cada momento uma pérola,
Cada lembrança uma senzala.


Escravo das horas indigestas,
Ressaltando a marca de dor sufocada,
Fingindo que o Tempo é um curandeiro,
Como é inútil assassinar o relógio!


Cabe à insanidade do Tempo,
Dilacerar vagarosamente cada músculo cardíaco,
Com um bisturi de ponta cega,
Engolir a saliva à seco sem olhar para os ponteiros.


Tudo ao mesmo Tempo agora,
E nada que faça satisfazer a imensa vontade,
O Inferno não espera ninguém e não faz hora,
Salta de suas profundezas e engole o presente.


Dizem que o tempo não pára,
Quanta bobagem há nisto!
O Tempo é a metáfora circulante sem nexo,
Para que acreditemos vivenciar alguma coisa lá fora.


O Tempo não escolhe inimigos,
Tampouco seleciona amigos,
O Tempo é uma lâmina de indiferença,
Sobre os pulsos dos desavisados e dos encarcerados.


Alguns mergulham nas horas,
Como se a vida rezasse para o Tempo ser algum remédio,
Bolhas eclodem em pés cansados e marcas indeléveis sobre a face,
A caminhada inverossímil contra o Tempo até ser levado o corpo.


O Tempo corre livre enquanto a vida encurta,
Desliza silenciosamente pela garganta,
Sobre a pele pode gerar algumas silhuetas,
Mas a dor... Ela é estática!


O Tempo que não passa o Amor,
O Tempo que a Paixão nunca é esquecida,
Nenhuma fluidez do Tempo faz deslembrar toda a ternura,
A ingratidão do Tempo que aprisiona ponteiros, olhares e corações.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Cidade Niilista


Sinal fechado em mãos abertas,
Tarde de Sol com boa claridade,
O ar continua seco, mas amenizou a atmosfera fria,
É difícil transcrever algumas palavras com a devida exatidão.


O trem cambaleia com certa tranqüilidade,
Vagão vazio lembra a barca de Caronte,
Percorro meu olhar a volta,
Só há um silêncio que teima reinar absoluto.


Segue solene o trajeto da viagem,
Pensamentos que não pára em lugar algum,
Sentimentos fragmentos e vicissitudes apagadas,
Com quantos tijolos se faz um castelo?


O Sol continua a brilhar pelas janelas da composição,
Talvez fique assim por mais uma hora,
É possível crer que no final há sempre uma saída,
Para qualquer emergência, é bom utilizar um bom alicate que desvencilhe correntes.


A noite chega impregnada e sorrateira,
Na avenida que se intitula a mais paulista de todas,
Transeuntes dos mais diferentes nichos homogeneizados,
Risos histriônicos, piercings e dentes à mostra.


A cidade de tão grande que sua dimensão,
Se completa cheia de lacunas esvaziadas,
Os faróis dos carros flamejam como estrelas,
Os zumbidos de tão fortes se mesclam numa sinfonia anacrônica.


A mesa de bar é uma ilha num arquipélago sem graça,
As luzes que iluminam a cidade,
Nenhuma delas provém da imensidão áurea dos seus olhos,
Num copo meio cheio, meio vazio, não se encontra ninguém.


Para cada relance de olhos,
Um desejo que possa lhe encontrar,
Uma busca inócua no enorme palheiro de concreto,
A vida de tão áspera, eclipsa a dor.


Assim adentra a noite,
Não sei onde se encontra seus pensamentos,
E não sei como conduzir minhas mãos,
Sempre pedindo a sua direção.


Ruas semi-desertas com algumas almas perambulando,
Sexo fácil vendido com tabela de mercado,
Artificialidades do Amor a la carte,
A cidade sem rosto tem a mesma cor sensorial da noite.


Avenida Augusta sabe lá que número,
O copo se esvaziou lentamente,
Bauman e Maffesoli me fazem companhia,
Nada se traduz na indisfarçável vontade de senti-la comigo.


Sábado à noite,
Na cidade que quase não pára,
Sem pautar por melhores caminhos,
Resta-me a beber este café amargo.


Afinal, o Amor não é nada estranho,
É bem mais simples do que seja possível imaginar,
Na cidade materializada de solidão e indiferença,
Seus olhos ausentes transformam a maré gritante em saudades.

domingo, 17 de agosto de 2008

Sapere Aude*


A ninguém, exceto aos que nele terão prazer. (Schubert)

* * *


Ouse ser menos um na multidão,
Não viver atado aos vícios caquéticos,
Repetir à exaustão as velhas senilidades despejadas pelo Fantástico,
E não mirar com garfo e faca nos glúteos da colega de trabalho.


Ouse ser menos cretino,
Viver sem consumir tanta bobagem e não dizer tanto amém a Veja,
Não pisar com sutis patas de elefante na garganta do outro,
E não violentar sorridente à própria esposa.


Ouse ser menos selvagem,
A vida social não é uma guerra urbana,
Não matar por mero deleite de perversão,
E não balbuciar com cara de pobre-coitado que tudo isto é “normal”!


Ouse ser menos submisso ao ego,
Não cuspir tanto para os ares,
Não ignorar os alarmes,
E não se esconder na fragilidade da auto-segurança.


Ouse ser menos estúpido,
Não acreditar que a vida é o que ela aparenta ser,
Desconfiar da inevitabilidade das crendices,
E não viver para ser mais um vegetal no aquário.


Ouse ser menos cordeiro,
Não adianta ser o lobo predador da vítima indefesa,
Cuidado com abutres e cantos de sereia ou baiacu,
E não acredite que a tal modernidade é para sempre.


Ouse ser menos “esperto”,
Acreditando ser mais moderno para levar vantagem em tudo,
Atitudes de pseudo-adolescência na maturidade,
E a exibição da arrogância tão desnecessária.


Ouse ser menos tolo,
Não vestir a camisa-de-força do empregador,
Ele lhe dará o pé-na-bunda na primeira oportunidade,
No capitalismo, somos todos substituíveis e descartáveis.


Ouse não ser tão ilimitado,
A vida não é uma brincadeira efêmera,
Menos ainda um sofrimento infinito,
E não fingir que o pragmatismo é a única saída possível.


Ouse não correr tanto,
Diminua a velocidade turbinada para o grande vazio,
Não desespere na ânsia de diversão pré-fabricada, fortuita e sexo acidental,
E ainda não é preciso bajular o planeta para demonstrar alguma autenticidade.


Ouse ser inteiro,
Ser mais íntegro e pouco relutante,
Ninguém pode ser sempre o caçador atrás da presa atordoada para abate,
E ainda somos humanos e não marionetes de um safári.


Ouse ser sincero e não beijar o formigueiro,
Queimar constantemente a própria face,
Submeter aos mais esdrúxulos caminhos de sobrevivência,
E não adianta culpar os deuses e demônios pelas próprias escolhas.


Ouse ser menos corrupto,
Não corroer os próprios desejos e virtudes,
Não cultivar a futilidade pasteurizada nossa de cada dia,
E não se encarcere no peso das máscaras e convenções sociais.


Ouse ser mais honesto com o Amor e consigo mesmo,
O outro não é um mero objeto de consumo imediato,
Tampouco cada desejo não é uma realização instantânea,
E não encharcar o travesseiro criando uma muralha sentimental.


Ouse estender a mão,
Não fechar a porta para quem trás bons frutos,
Pouco adianta o isolamento inconsciente como refúgio,
E não faça dos fantasmas o farol de suas ações.


Ouse ser a esperança,
Para si e para seus entes queridos,
Que possa acreditar na construção de dias melhores,
E não cair na tentação dos catastróficos atalhos.


Ouse ser mais amável com os próprios filhos,
Um punhado a mais de atenção e menos distância,
Não existe fórmula mágica para o carinho fraternal,
E não se sinta culpado pelo que não estiver no alcance de suas mãos.


Ouse ser mais humano,
A possibilidade de construir novas fronteiras,
Não se limitar a simples ou falsas barreiras,
E não deixar o tempo matar a essência da vida.


Ouse ser a revolução,
Que traga a Paz que só encontrou nas páginas do dicionário,
Transformar o ambiente num lugar menos indócil,
E não deixar que egoísmos inócuos sobrepujem os atos coletivos.


Ouse ser mais livre,
Desatar os nós da arrogância e ignorância,
Desvencilhar as amarras invisíveis do peito,
E acreditar que a vida é o maior de todos os nossos bens.


Ouse ser mais feliz,
Não apenas reciclar verbetes de auto-ajuda,
Olhar para as mãos e ser o agente da própria mudança,
E o mundo que é só seu também será um mundo melhor para todos.

____________


* Tradução do latim, “ouse saber”.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ambivalência


“Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” (Mateus, 7.6)


Preocupado com o quê fazer nos seus últimos dias de vida,
Um condenado à morte começou a rememorar,
Toda a sua existência colocada em cima da mesa,
E muitas reparações ainda a serem realizadas.


Ele não era qualquer figura,
Já esteve presente nas mais gritantes enfermidades da humanidade,
Matou, castigou, conspirou e traiu muita gente,
Sempre foi temido, mas hoje sucumbe ignorado.


No seu reino, o deserto da solidão e labaredas acolhia seu leito,
Seus aliados o traíram e pouco restou do seu imenso poder,
Tanto fez para ser respeitado que agora caiu em descrédito,
Sua auto-estima abalada foi atirada nas catacumbas do esquecimento.


Sua voz outrora foi sinal de poder,
Hoje se tornou motivo de zombaria,
Sua fúria foi trocada pela desolação,
Seu ódio era tão intenso e inutilmente inócuo.


Sem saber o que fazer com os mortos guardados nos seus enormes armários,
A cabeça pesada de tantas imagens tétricas,
O Senhor de Todas as Trevas não regia absolutamente nada,
Sem barco ou prumo, a imortalidade agora chegou ao fim.


Sem abandonar a esperança,
Ele buscou trocar as últimas palavras com seu Criador,
Tentou vários dias algum diálogo,
Foi aconselhado a desistir da inglória idéia.


Ignorado pelo próprio Pai,
Ele desejou visitar pela última vez seu antigo campo de atuação,
Caminhou então por algumas cidades e desertos,
Varou algumas noites e dias em profundo silêncio.


Ninguém reconheceu a ilustre e decadente entidade,
Ignorado, percebeu que seus ensinamentos formaram bons discípulos,
Toda a sua pregação foi absorvida como uma esponja catalizadora,
Ele agora se tornou uma figura completamente inútil.


Ele não sentia remorso, porém não entendia os motivos que o levou a perder seu reinado,
Acreditou que poderia manter seus domínios eternamente,
Subestimou a capacidade dos seus seguidores,
Agora, ninguém precisava dele para nada.


Estava cada vez mais trêmulo e cambaleante,
Suas energias estavam se esgotando rapidamente,
Nada mais movia suas forças que se encontravam limitadas,
A Morte era a última companhia a ser encontrada.


E no encontro do seu destino final,
Revelou para sua executora muitas premunições e angústias que carregava há anos,
A Morte sempre indiferente ouviu-o com exíguas palavras,
Afirmou-lhe então que para tantas dúvidas, qualquer resposta para o caos era efêmera e precária.


Com a cabeça baixa e ajoelhado num oceano de cinzas e cadáveres,
Ele caiu e consentiu ser guiado pela Morte,
O Senhor de Todas as Trevas definitivamente abandonou seu reino com total descrédito de seus antigos súditos,
Em pouco tempo, alcançou os Céus e ali permaneceu purgando suas memórias para toda a eternidade.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Desvencilhar e Guardar (Para ir além de si)



Não sei o que faz remoer seus pensamentos,
Talvez deva fazer-lhe lembrar,
Os atalhos podem ser mais fáceis e atraentes num primeiro momento,
Mas não nascerá uma flor e tampouco levará a parte alguma e a nenhum lugar.


Se quiser se mover tão rápido,
Mudar as estações num piscar de olhos,
Tudo isto seria realmente muito fácil,
Se a vida não fosse um pouco mais complexa.


Se na primeira pedra o mais simples é atirar ao chão a toalha,
Inútil saída. Virão outras pedras com todos os seus obstáculos,
Diante de tantos artifícios com tamanha porosidade,
Quando se der conta já estará debaixo da cama.


Fingir tanto e com tal ímpeto,
Que parece ser tudo normal,
Como se o tempo fosse um band-aid,
Para curar a úlcera sentimental.


Melhor se (in)feliz do que o contrário – diz o verbete do Manual,
Os caminhos são mais curtos e sintéticos,
Ninguém precisa querer se levantar,
Basta somente guardar a dor e deixar o tempo passar.


Tantas vezes querer que o dia acabe,
Somente para não olhar através da janela,
Ter receio de saber se é dia ou noite,
Melhor seria fechar os olhos e ver a vida passar.


Pequenas mentiras cotidianas para si mesmo,
Tanto esforço para acreditar não carecer de ninguém,
Uma fábrica de sentidos reciclados, autônomos e auto-suficientes,
Infelizmente, alguém esqueceu de avisar que tudo isto não passa de narcíseas miragens.


O desejo de não tocar e sentir,
Como se nada pertencesse a gente,
Cada um cuidando de si,
Acabam todos desabrigados pelo tempo da indiferença.


É bem mais fácil negar ou sorrir cosmeticamente,
Seja ocultar uma dor ou reprimir uma saudade,
Se guardar sempre como um bloco de gelo humano,
Porém não esquecer que sob o Sol tudo se liquefaz.


Procurar palavras que maculam inutilmente o outro,
Nunca cultivar a fundamental sensibilidade entre os dedos,
Não vale a pena esperar pela senha até o advento da noite eterna,
A vida só será vivenciada se for para desvencilhar das suas próprias fronteiras.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

O Jardim de Olívia


“Entre a mágoa e o nada. Eu prefiro a mágoa.” (William Fawcett)


Naquela casa onde quase sempre era um punhado de desalento,
Abrigava uma menina sem pai ou mãe,
Acolhida pelo voluntarismo de uma família postiça,
Tudo era meio silenciado, isolado e artificial.


Seus sonhos eram minguados e seus anseios da vida também,
Não tinha nenhuma perspectiva de futuro,
O que somente encantava aquela menina,
Era sempre colher uma flor do jardim.


Com lenta suavidade, de rosa em rosa,
A menina foi crescendo na aspereza e distanciamento dos sentimentos,
Não conseguia fazer amigos porque desconfiava de toda gente,
Tudo era uma monotonia e ela acreditava que ninguém estava páreo para seu enlace.


Mesmo entrando na adolescência,
A menina nunca deixou de colher sua rosa diária,
Como numa procissão silenciosa e assim fazia todos os dias,
Como se cada rosa significasse um dia a mais na sua insípida vida.


Na escola era como bater cartão no maquinário fordista,
Fazia com indiferença tudo o que era pedido,
Tirava nota quando era somente necessário,
Trabalhava o mínimo para “passar de ano”.


Ela sempre gostava de observar a noite,
Cada estrela oriunda do manto negro que cobria sua casa,
Nunca conseguiu contar todas as estrelas,
Mas ela sempre acreditou que sua contagem tinha chegado bem perto.


Da adolescência à famigerada adulta,
O mundo ficou mais desencantado do que outrora,
Arranjou um ofício para trocados e lá permaneceu com vínculo,
Mas mesmo assim, a cada dia nunca deixou de colher uma rosa.


As tarefas eram rotineiras e quase sempre repetitivas,
Não exercia a criatividade e tampouco merecia queimar alguns neurônios,
A secura do trabalho combinava com o vazio de seus dias,
Prazer mesmo era a rosa colhida que fazia sua alegria.


Sem amigos, ela tocava a vida como se conduzia gado,
Sem pressa, ela se via preenchida pelo sonho de ter um jardim somente dela,
Nunca teve amores e achava as pessoas um longo tédio,
De pouca conversa, ela quase sempre se manifestava via diálogos fragmentados.


Numa certa manhã chuvosa e cinza,
Colheu cedo sua flor do dia e foi para o trabalho,
No caminho ao atravessar desatenta a rua,
Foi atingida por um automóvel desgovernado que havia freado sem sucesso.


Caída ao chão e sangue à sua volta,
Foi levada ao hospital de alguns quarteirões dali,
Não fez muita força para resistir,
E como se não quisesse mais nada da vida... Desejou perecer.


E os dias para aquela criança-mulher cessaram,
Um fim tolo para uma vida idem,
Não conseguiu realizar em vida seu sonho de infância,
Seu jardim florido tão almejado.


Mas como a existência é sempre irônica,
No seu funeral, mesmo com reduzidas pessoas e algumas borboletas,
Polvilharam com flores de todas as cores seu tumulo,
Enfim, no último momento seu sonho foi contemplado.


Aquela vida tão solitária, seca e tediosa,
Sempre regada à introspecção e sem nenhum propósito,
Diante da ausência, subitamente tinha ganhado vida seu jardim póstumo,
Mesmo quando não se escolhe a vida; ela nunca deixa de existir.