domingo, 17 de agosto de 2008

Sapere Aude*


A ninguém, exceto aos que nele terão prazer. (Schubert)

* * *


Ouse ser menos um na multidão,
Não viver atado aos vícios caquéticos,
Repetir à exaustão as velhas senilidades despejadas pelo Fantástico,
E não mirar com garfo e faca nos glúteos da colega de trabalho.


Ouse ser menos cretino,
Viver sem consumir tanta bobagem e não dizer tanto amém a Veja,
Não pisar com sutis patas de elefante na garganta do outro,
E não violentar sorridente à própria esposa.


Ouse ser menos selvagem,
A vida social não é uma guerra urbana,
Não matar por mero deleite de perversão,
E não balbuciar com cara de pobre-coitado que tudo isto é “normal”!


Ouse ser menos submisso ao ego,
Não cuspir tanto para os ares,
Não ignorar os alarmes,
E não se esconder na fragilidade da auto-segurança.


Ouse ser menos estúpido,
Não acreditar que a vida é o que ela aparenta ser,
Desconfiar da inevitabilidade das crendices,
E não viver para ser mais um vegetal no aquário.


Ouse ser menos cordeiro,
Não adianta ser o lobo predador da vítima indefesa,
Cuidado com abutres e cantos de sereia ou baiacu,
E não acredite que a tal modernidade é para sempre.


Ouse ser menos “esperto”,
Acreditando ser mais moderno para levar vantagem em tudo,
Atitudes de pseudo-adolescência na maturidade,
E a exibição da arrogância tão desnecessária.


Ouse ser menos tolo,
Não vestir a camisa-de-força do empregador,
Ele lhe dará o pé-na-bunda na primeira oportunidade,
No capitalismo, somos todos substituíveis e descartáveis.


Ouse não ser tão ilimitado,
A vida não é uma brincadeira efêmera,
Menos ainda um sofrimento infinito,
E não fingir que o pragmatismo é a única saída possível.


Ouse não correr tanto,
Diminua a velocidade turbinada para o grande vazio,
Não desespere na ânsia de diversão pré-fabricada, fortuita e sexo acidental,
E ainda não é preciso bajular o planeta para demonstrar alguma autenticidade.


Ouse ser inteiro,
Ser mais íntegro e pouco relutante,
Ninguém pode ser sempre o caçador atrás da presa atordoada para abate,
E ainda somos humanos e não marionetes de um safári.


Ouse ser sincero e não beijar o formigueiro,
Queimar constantemente a própria face,
Submeter aos mais esdrúxulos caminhos de sobrevivência,
E não adianta culpar os deuses e demônios pelas próprias escolhas.


Ouse ser menos corrupto,
Não corroer os próprios desejos e virtudes,
Não cultivar a futilidade pasteurizada nossa de cada dia,
E não se encarcere no peso das máscaras e convenções sociais.


Ouse ser mais honesto com o Amor e consigo mesmo,
O outro não é um mero objeto de consumo imediato,
Tampouco cada desejo não é uma realização instantânea,
E não encharcar o travesseiro criando uma muralha sentimental.


Ouse estender a mão,
Não fechar a porta para quem trás bons frutos,
Pouco adianta o isolamento inconsciente como refúgio,
E não faça dos fantasmas o farol de suas ações.


Ouse ser a esperança,
Para si e para seus entes queridos,
Que possa acreditar na construção de dias melhores,
E não cair na tentação dos catastróficos atalhos.


Ouse ser mais amável com os próprios filhos,
Um punhado a mais de atenção e menos distância,
Não existe fórmula mágica para o carinho fraternal,
E não se sinta culpado pelo que não estiver no alcance de suas mãos.


Ouse ser mais humano,
A possibilidade de construir novas fronteiras,
Não se limitar a simples ou falsas barreiras,
E não deixar o tempo matar a essência da vida.


Ouse ser a revolução,
Que traga a Paz que só encontrou nas páginas do dicionário,
Transformar o ambiente num lugar menos indócil,
E não deixar que egoísmos inócuos sobrepujem os atos coletivos.


Ouse ser mais livre,
Desatar os nós da arrogância e ignorância,
Desvencilhar as amarras invisíveis do peito,
E acreditar que a vida é o maior de todos os nossos bens.


Ouse ser mais feliz,
Não apenas reciclar verbetes de auto-ajuda,
Olhar para as mãos e ser o agente da própria mudança,
E o mundo que é só seu também será um mundo melhor para todos.

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* Tradução do latim, “ouse saber”.

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