sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Ambivalência


“Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e, voltando-se, vos dilacerem.” (Mateus, 7.6)


Preocupado com o quê fazer nos seus últimos dias de vida,
Um condenado à morte começou a rememorar,
Toda a sua existência colocada em cima da mesa,
E muitas reparações ainda a serem realizadas.


Ele não era qualquer figura,
Já esteve presente nas mais gritantes enfermidades da humanidade,
Matou, castigou, conspirou e traiu muita gente,
Sempre foi temido, mas hoje sucumbe ignorado.


No seu reino, o deserto da solidão e labaredas acolhia seu leito,
Seus aliados o traíram e pouco restou do seu imenso poder,
Tanto fez para ser respeitado que agora caiu em descrédito,
Sua auto-estima abalada foi atirada nas catacumbas do esquecimento.


Sua voz outrora foi sinal de poder,
Hoje se tornou motivo de zombaria,
Sua fúria foi trocada pela desolação,
Seu ódio era tão intenso e inutilmente inócuo.


Sem saber o que fazer com os mortos guardados nos seus enormes armários,
A cabeça pesada de tantas imagens tétricas,
O Senhor de Todas as Trevas não regia absolutamente nada,
Sem barco ou prumo, a imortalidade agora chegou ao fim.


Sem abandonar a esperança,
Ele buscou trocar as últimas palavras com seu Criador,
Tentou vários dias algum diálogo,
Foi aconselhado a desistir da inglória idéia.


Ignorado pelo próprio Pai,
Ele desejou visitar pela última vez seu antigo campo de atuação,
Caminhou então por algumas cidades e desertos,
Varou algumas noites e dias em profundo silêncio.


Ninguém reconheceu a ilustre e decadente entidade,
Ignorado, percebeu que seus ensinamentos formaram bons discípulos,
Toda a sua pregação foi absorvida como uma esponja catalizadora,
Ele agora se tornou uma figura completamente inútil.


Ele não sentia remorso, porém não entendia os motivos que o levou a perder seu reinado,
Acreditou que poderia manter seus domínios eternamente,
Subestimou a capacidade dos seus seguidores,
Agora, ninguém precisava dele para nada.


Estava cada vez mais trêmulo e cambaleante,
Suas energias estavam se esgotando rapidamente,
Nada mais movia suas forças que se encontravam limitadas,
A Morte era a última companhia a ser encontrada.


E no encontro do seu destino final,
Revelou para sua executora muitas premunições e angústias que carregava há anos,
A Morte sempre indiferente ouviu-o com exíguas palavras,
Afirmou-lhe então que para tantas dúvidas, qualquer resposta para o caos era efêmera e precária.


Com a cabeça baixa e ajoelhado num oceano de cinzas e cadáveres,
Ele caiu e consentiu ser guiado pela Morte,
O Senhor de Todas as Trevas definitivamente abandonou seu reino com total descrédito de seus antigos súditos,
Em pouco tempo, alcançou os Céus e ali permaneceu purgando suas memórias para toda a eternidade.

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