"Eu vi a morte,
Lá estava ela; serena, paciente e me esperando com seu largo sorriso",
Escreveu com garranchos diante da calçada onde servia de abrigo,
Um moribundo despossuído como se seu destino já tivesse sido traçado.
Dormia ao relento com barulho estrondeante,
Aquele homem nada tinha além de um par de cães sem pedigree,
Vestes despedaçadas e nenhuma esperança no bolso,
Um colchão velho e mãos trêmulas de dores.
O que ainda restava de dignidade tinha escorrido pelo ralo,
Perdeu o pouco que tinha na vida,
Emprego, trocados, família e amor,
E a violência gratuita das ruas virou seu endereço.
Quantas vezes os homens de cinza não bateram em seus ossos,
Quantas vezes já tentaram expulsá-lo dali,
Mas a rua era o seu lugar,
E nada fazia extrair-lhe qualquer concessão.
Não vendeu sua alma para os alambiques,
Como tantos outros vizinhos trôpegos aderentes ao chão,
Seus fantasmas não eram irrigados com álcool,
Ele não tinha nenhuma alegria ou perspectiva.
Sua simples presença criava um mal-estar aos transeuntes,
Viravam os rostos como se ele fosse um leproso,
Ele nunca mendigou nada naquela sociedade,
Fazia pequenos bicos fluindo minguados trocados.
O mundo era disforme e selvagem,
Sem horizonte, a única certeza era a pacificadora morte,
Mais dias, menos dias, ele sabia o que lhe esperava,
Até surgir uma fria madrugada de inverno.
Ele adormecia envolvido com seus trapos,
Os cães faziam o mesmo em volta do seu dono,
Tudo eram silêncio e sujeira ao seu redor,
A tranqüilidade era apenas miragem.
Alguns homens sorrateiramente carregavam galões de algum líquido,
Espalhou seu conteúdo por toda a volta,
Sem piedade alguma, riscaram um palito de fósforo,
Era possível ouvir incontroláveis gargalhadas e o levante fúnebre das chamas.
Seu corpo em poucos segundos foi tomado,
Seu grito de desespero ecoou pela rude cidade,
Cada centímetro de carne virando brasa,
E os cães uivando de incontrolável desespero.
Ninguém quis ouvir, ninguém saiu de seus ninhos,
Afinal, ele era apenas um fardo de lixo humano,
Quem ligaria para trapos e farrapos?
“Minha vida é a minha vida. Dane-se o outro!”, imperava sempre.
No egocentrismo visceral que alicerça uma cidade,
Os corpos dos cães e seu dono foram consumidos vivos pela indiferença,
A mesma indiferença que não transforma a bestialidade em humano,
A metástase virulenta que abate qualquer forma de liberdade.
No início da manhã seguinte a cidade acordou aliviada do seu intruso indesejável,
O que restou do seu corpo foi levado pelo caminhão de limpeza pública,
Quantos gritos de dor amortecidos pelo concreto?
Ninguém sabe, ninguém ouviu e continuam fechadas tantas portas e janelas.
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