terça-feira, 22 de julho de 2008

O Anjo Distraído


Numa noite de densas nuvens,
Bem lá do alto, desceu um anjo,
Olhos cintilantes e sorriso sem igual,
Buscando caminhar sobre o solo da Terra.


Sabia pouco da vida,
Tudo foi visto somente em manuais e coisas similares,
Acreditava na palavra dos homens,
Acreditava na palavra dos animais.


E assim começou o percurso,
Sentiu fome, frio e um pouco de sede,
Sequer uma casa, um teto, um abrigo,
Tudo ao redor era um deserto.


Bateu na primeira porta: nada,
Bateu na segunda porta: nada também,
Assim foi a mesma história até à décima porta,
Todos ignoraram o anjo na estrada.


Banhado de fé acreditava que tudo era passageiro,
Afinal, o Pai criou seus filhos à sua imagem e semelhança,
E se o molde tivesse errado?
Quem garantiria o altruísmo dos homens?


Perambulou durante três dias,
Varou congelado por três noites,
Apesar da situação desnorteadora,
Tinha fé que tudo era passageiro.


Enfim, numa certa casa,
Um homem de meia-idade e sorriso fácil,
Concedeu-lhe abrigo, carinho, sopa e pão,
Sem dúvida, o anjo ficou fortemente agradecido.


Foi presenteado com uma cama limpa, lençóis e cobertas quentes,
Num quarto pequeno, arejado e aconchegante,
Seria a personificação da bondade humana presente em gestos tão simples?
Naquele momento de calmaria e tranqüilidade absolutas.


De súbito o silêncio foi quebrado,
Seu corpo foi agarrado e suas vestes foram rasgadas,
Sua boca foi bloqueada agressivamente,
E o homem que havia gentilmente concedido abrigo, vociferava.


Naquele instante, o anjo atônico e desprovido de dignidade,
Aquele homem forçava violentamente a sua intimidade,
Lágrimas de desespero percorriam a sua face,
Não podia gritar, não podia se mexer; tudo era um mar de dor.


Após algum tempo de brutalidade irracional,
Satisfeito, o homem com marcas da vítima saiu do quarto,
Com os olhos extáticos e sangue entre lábios,
O anjo tremia descontroladamente sobre a cama desfeita.


Na vã tentativa de canalizar últimas forças,
Agarrou-se a um pequeno crucifixo que carregava sempre consigo,
Balbuciou de maneira disforme alguma prece,
E orou para que o Pai perdoasse a fraqueza e a ingratidão dos seus filhos.


Sangrando entre as pernas e deixando sinais pelo chão,
Com o corpo pesado, caminhou cambaleante pelo quarto,
Chegando até a pia, procurou no armário pelo objeto mais útil no momento,
Lágrimas mesclavam-se com o sangue dos lábios.


A busca finalmente foi finalizada ao descobrir uma pequena lâmina,
Com mãos trêmulas segurou-a firmemente entre os dedos,
Ergueu lentamente o seu pulso,
E cravou com sua última força o frio metal em sua carne.


Era alta madrugada,
O silêncio dominava a paisagem,
Aquele anjo que desceu na Terra em nome da Paz e da verdade entre os homens,
Havia mergulhado seu próprio corpo num mar de rubro lamento.


Foi sepultado numa vala-comum, sem identificação ou orações de partida,
O anjo distraído confundiu a barbárie humana com Amor altruísta,
E assim, com a certeza que a vida é mais árdua do que indicam as aparências,
Voltou para a sua casa, voltou para o seu verdadeiro abrigo...

Um comentário:

Unknown disse...

Amei... Singelamente verdadeiro e delicadamente violento.

Ainda mts, e não só os anjos, confundem a barbárie humana com o amor altruísta.

Esse com certeza eu irei guardar!