sexta-feira, 20 de julho de 2007

A mercadoria sentimental: o amor entre falas e favas

Falar do amor todos podem falar. A partir de poemas redigido pelos cotovelos, mensagens com péssima grafia em guardanapos ou rabiscos em portas de banheiro. Isto inclui os que nunca tiverem um amor ou mesmo praticaram sua quintessência. Todo amor digno de nome é um ato incondicional. Mudam suas formas, gostos e práticas, porém a definição vale até mesmo debaixo d´água (afinal, o deslanchar do prazer não está associado à alguma forma líquida?). Cabe ao ser amado compartilhar ou não das regras de um jogo de definições mútuas: ora tangíveis, ora invisíveis.


Amamos muitas coisas: o macho, a fêmea, o cachorro, o gato, a nova propaganda de cerveja, o gol de mão do seu time quase rebaixado, a cantada proveniente de alguém que canta até debaixo do chuveiro, aquele guarda-chuva que esquecemos em dia de temporal, o pão adormecido quando bate a fome da madrugada, o aumento de 1% na folha de pagamento (seja desconto ou salário, o importante é ter algo diferente para sair do tédio do holerite!), as trezentas e cinqüenta prestações sem juros (?) da última moda da indústria da poluição automotiva, a calcinha cuidadosamente visível da vizinha ou o novo investimento bancário de cara bom-partido que tem rosto de nádegas. Amamos, amamos... Só love?


Caindo na real, o amor não é uma mercadoria, embora o mercado insistir em prefixar seu preço. Na partilha, o bom mesmo é dividir, socializar, querer distribuir o pouco que possui. O socialismo do amor é permitido sem, no entanto, virar uma digna festa do cabide (o último apaga a luz!). É uma tarefa desprendida de egos ou individualismos fúteis. É uma batalha dual: todos ganham ou o inverso ocorre constituindo na tragicomédia coletiva.

Trocar dádivas não é obrigação imperativa, porém é um gesto de apreço, sentimento e reconhecimento. Aliás, quem não reconhece o outro, seja por medo, insegurança ou menosprezo, estará fadado a perder ou deixar de ser cativado. Toda independência depende necessariamente do reconhecimento do outro. O outro existe na medida em que é reconhecida sua autonomia. O amor é a liberdade. O prazer imediato é o labirinto. Quando não existe empatia entre amor e liberdade, os laços são ficções que podem beirar do platonismo demiurgo ao onanismo de ocasião.


Ninguém pode amar além do seu amor-próprio sem cair no perigo viés de um precipício autofágico. Amor não é alíquota a ser descontada no balanço teatral de nossas hipocrisias natalinas. Quando o Amor é uma construção da dádiva, os saldos são quase sempre positivos e alguma taxação de imposto podem ser descontados (não nos iludimos: assim como a falibilidade de homens e mulheres, naturalmente, não existe a perfeição sentimental!). Amor não é apenas passivo, é a atitude ativa que fortalece a confiança. Portanto, na partilha do amor, todos os gestos, por menores que possam transparecer, será sempre um momento de encanto que somente sedimenta a união em detrimento aos processos de diluição.


Podemos amar ou demonstrar amor até quando esse tal amor for suficiente para se oferecido ou quando a paciência permitir generosamente. Seja qual for a maneira de amar, cabe a cada protagonista marcar seu território e assim buscar atuar sem maiores cerimônias o seu papel. Nem devemos nos prender com as tolices de sempre buscar ostentar gratuitamente um amor sem subsídios. Amor sem contrapartida é sexo por correspondência. Isto não pode ser considerado um amor voluntário, mas apenas mistificação ou, mais profundamente, alienação.


O amor não é algo tão difícil que jamais possa ser entendo e não tão trivial a ponto de qualquer indiferença ou insensibilidade ponha tudo para escanteio. Cultivar o amor como um exercício do bem-viver é simplesmente marchar sobre terrenos não menos perigosos, porém com mais suavidade e firmeza. Não nos enganemos, o amor não é futilidade de prateleira de supermercado, nem pode ser parcelada em algumas vezes no cartão de crédito. Resistimos: há um brotar do solo enfermo uma réstia de luminosidade, talvez um momento terno de acreditar que ainda é possível ser humano num mundo cada vez mais hostil a vida humana.


Que o Kamasutra não nos engane. Fazer sexo é bom, pode até dar torcicolo, algumas marcas e arranhões. Para os mais pragmáticos ou esportistas, com algum montante de reais se compra qualquer desejo na esquina. Diferente do imediatismo presente no sexo, construir o amor passa por um processo de clivagem e que aos poucos é possível lapidar com um grau variável de perfeição o processo.


Amor e sexo não são meros antagonistas de teatro mambembe, mas a contraparte que se realimenta com maior intensidade na medida em que um lado dependa incondicionalmente do outro. Amigos não fazem amor, no máximo, um sexo amigo. Amantes não fazem amor, praticam alguns exercícios físicos que variam entre a ansiedade e a demência. Amor de uma única noite é “happy hour” mais longo que você acorda com dor-de-cabeça e perguntando a questão-chave: “quem é você?” (e que eventualmente pode piorar – e muito - nove meses depois!). O amor em solidão é castração. O amor e respeito pelo outro é o seu reconhecimento como sujeito e interlocutor. O amor é para os loucos de espírito que não se incomodam com as agruras da mesquinharia e continuam imergindo numa guerra hostil praticando seus pecaminosos exercícios de afeto e humanidade.

Sem parcimônia, todo mundo quer ser amado como Narciso enamorado por sua esfinge no espelho d´água. A contrapartida é que é o problema. O amor cede demais, o ódio nutre e aglutina os dissabores do ego. Logo, num mundo onde os valores morais se invertem drasticamente, o amor é o réu da angústia e o ódio é o alimento contaminado que alicerça a alma. Um falso sofisma que pode ser observado nas prateleiras de livrarias repletas de publicações senis de auto-ajuda. A escola perdeu seu espaço social e deixou sua tarefa de construir um aprendizado significativo de suas crianças e adolescentes para formar gerações de consumidores egocêntricos e frágeis. Ninguém quer mais sentir, apenas consumir. Consumir de forma alienante, rápida e indolor. Hoje, agora e neste momento.

Pervertendo as ilusões cartesianas: consumo, logo existo! Quando o amor se transforma em mercadoria, o prazer autista é a sua moeda de troca. Consumimos amor, sexo, amizade, educação, política, violência, drogas, fé e religião. Tudo o que se pode mercantilizar é o espaço constituinte da esfera do celeiro representado pelo consumo. No entanto, consumir sentimentos sem vivenciá-los é o mesmo que carregar o corpo sem a alma. É desumanizar o humano e encarcerar a liberdade. Sociedades mediadas pelas relações de fragilidade social e exacerbação de uma suicida ideologia do individualismo empreendedor e fútil constituem cruéis matrizes de grande instabilidade e tensão que poderá ir muito além do controle que a coerção da força estatal. A violência não se justifica simploriamente apenas pelas diferenças entre os donos da riqueza e os servos da agonia. Uma sociedade que mercantiliza e irradia o fetichismo de todas as formas de sentimento, reproduzem a vibratilidade de se constituir num pantanoso terreno de sua fragmentação como gestores do espaço público. Os sentimentos são cooptados pela rigidez bestial dos lucros e as relações pessoais pulverizam-se em meros segmentos de auto-interesse e satisfação do prazer imediato. Partindo desses pressupostos, a erosão da esfera pública será o triunfo da ganância irracional contra toda forma de organização social humana. Dita de outra forma, a civilização cederia espaço para a barbárie.

A respeito das manifestações da barbárie pós-moderna, observemos urgentemente Auschwitz rondando à nossa porta. Com a banalização do amor e dos mais elementares valores humanos nutrimos o estado primitivo e ameaçador que impulsionam os homens ao auto-extermínio. Em tempos de uma modernidade líquida sem juízo e tangida à um comportamento deletério doimediatismo consumista, o amor corre o risco de sucumbir na santa fogueira da Inquisição da modernidade: o estracismo.

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