sexta-feira, 16 de novembro de 2007

A morte anônima


Um homem sem rosto, sem vida e sem destino,
Anônimo como qualquer homem anônimo,
Já entediado do trabalho anônimo,
Já pulverizado pelos amores anônimos,
Já amedrontado pelas atrocidades anônimas,
Já desgostoso da vida fútil e anônima,
Decidiu interromper seu anonimato.

Findar uma vida anônima não é fácil.
Procurou o primeiro hospital, amargou tempo numa fila anônima até falar com um médico igualmente anônimo,
Na consulta ao clínico cabisbaixo e sem olhar para a sua cara,
Foi desautorizado a praticar a eutanásia.
Frustrado, pensou numa outra forma de morrer anonimamente,
Buscou refúgio à beira de uma anônima ponte,
Após ter ingerido até o último gole de uma bebida sem rótulo,
Tomou coragem e tropeçou ao subir na borda da ponte, prendeu o cadarço que o salvou do lacônico salto.
Um transeunte anônimo viu o acontecido e rapidamente o tirou daquela condição.
Passaram os dias e nova tentativa de morte: agora era a vez da gilete.
Desastrado, a empreitada só cortou os seus dedos e sem sucesso para interromper a vida.
O azar não favorece a morte.

Desesperado, pegou aleatoriamente um produto químico da prateleira,
E ingeriu rapidamente sem pensar muito...
Apenas conseguiu uma congestão que lhe valeu dois dias preso num leito.
Na saída do hospital, a morte era cada vez desejada.
Sonhava noite e dia com a hora do fim dos seus dias.
Morrer era uma questão de honra.
Sem filhos, sem amor e apenas alguns tostões.
Sozinho na vida anônima e devendo o aluguel de um pequeno quarto-e-cozinha em gueto anônimo,
A obsessão pela face da morte era o que fazia valer os seus dias.
Decidiu então roubar um carro com a brilhante idéia de se chocar a um poste ou muro.
Na insana ação conseguiu atropelar duas pessoas e matar uma criança.
Preso em flagrante e amargurado,
Sem grana para o advogado e muito menos para subornar o juiz.
Foi julgado e condenado a dezoito anos de xadrez.

A cadeia foi o seu martírio!
A rotina enlouquecia seus temores suicidas ao acordar sempre na mesma cama e ver o céu com as mesmas quatro arestas nada anônimas.
Tanta vigilância dos guardas sem crachá era impossível dar cabo da sua vida.
Os anos se passaram e três tentativas frustradas de suicídio foram suprimidas pelos guardas.
A última grande tentativa foi interrompida pelo seu colega anônimo de cela que o salvou do enforcamento.
Nesta altura da vida, ele amaldiçoou a todos aqueles anônimos que salvaram a sua pele.
Com o tempo, soube que muitos colegas anônimos foram mortos ou saíram da cadeia.
E ele ainda permanecia com o seu único mordaz desejo à flor da pele.
Passou mais ainda o tempo...
Após comprido seu exílio,
Ele era outro homem...
Mais velho, entediado e as rugas marcando sua face.
Os pensamentos sobre a morte já haviam ficado no passado.

Agora era nova vida...
Liberto dos desejos latentes ele recomeçou suas leituras bíblicas que iniciara na cadeia.
Um legado deixado por um voluntário evangélico que lhe deu um bíblia e ele nunca soube sequer o seu nome.
Acreditava então que Deus havia lhe dado um destino e ele teria que trilhar os desígnios divinos.
Tantas tentativas de suicídio apenas fortaleceram seu desejo de vida.
Decidiu abrir uma igreja e trabalhar para fortalecer a obra de Deus perante as almas sofredoras.
Conseguiu recolher dinheiro com árduo trabalho anônimo em um depósito de sucatas.
Tudo estava programado para alugar um pequeno salão de uma rua sem placa e abrir a Igreja do Reconhecimento Divino.
Estava feliz como nunca tinha sentido felicidade antes:
Encontrou até mesmo uma moça anônima em uma fila de desempregados na cidade e espera dela o seu primeiro filho.
Percebeu que o desejo da morte foi a maior bobagem que tinha criado na vida.
A morte era caso passado e agora a vida era tudo o que ele desejava.
A rotina de novos dias e a espera do garoto o animou com grande alegria.
Numa manhã de gotas anônimas desabando sobre o céu da cidade,
Acordou pela manhã, beijou a testa da esposa adormecida e acariciou em silêncio a barriga que guardava sua criação.
Como sempre fazia cotidianamente, deixou o café e os pães sobre a mesa para sua amada e iria partir para mais um dia.
Antes de sair de casa, decidiu abrir a janela do quarto para entrar um pouco de luz no casebre precariamente iluminado.
Subitamente pisou em falso, escorregou no tapete, bateu a cabeça no chão...
A morte outrora tão aguardada finalmente chegou...
Sem aviso prévio, telegrama ou sem maiores ostentações.
Sem nenhum alarde, um velório recheado de vazios, muita chuva, uma pequena multidão de curiosos para manifestar a hipócrita piedade do defunto anônimo e apenas sua mulher grávida fazia companhia.
Sem flores, lágrimas ou despedidas lacrimosas foi enterrado.
Ainda no cimento amolecido sobre a sua sepultura anônima foi gravada com letras trêmulas uma mensagem escrita por sua mulher: "Aqui jaz um pai".

Ao subir ao Céu soube que seu desejo de morte era empecilho para encontrar a Paz.
Desceu sem passar pelo Purgatório devido ao excesso de contingente de almas anônimas.
Só no Inferno debaixo de um severo anonimato que o perseguiu por toda a vida,
Ele finalmente conseguiu fazer as pazes com a anônima Morte.

Até mesmo uma seca vida anônima pode aprender algumas lições:
A Vida é apenas um estranho espaço anônimo,
Viver só existe na lembrança alheia,
A Morte só se consolida no esquecimento.
O Céu é apenas uma miragem.
A Morte não escolhe o seu cúmplice
E tampouco possuí relógio suíço.

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