domingo, 27 de dezembro de 2009

Gina Lee (A Arte do Precipício)


Na palidez mórbida da noite sem rosto,
Ela caminha sem direção como uma discreta borboleta,
Martelando incansavelmente, a música zunia na cabeça,
E os impulsos percorrendo a mente em busca de salvação.


As luzes estroboscópicas enfeitam o cenário,
Os sorrisos alucinógenos patinam na pista,
Não se sabe se é o corpo ou a alma sublimando,
Detalhe que pouco importa no ritmo que transcende a razão.


Uma generosa fileira é evaporada sem constrangimento,
E outros seguidores avançam sobre as demais trilhas de elevação,
Na leva urticante que embala os fixos olhos de diamante,
Ela sorve com gula os pecados polvilhados a granel.


No avanço da madrugada sem destino e voraz cizânia,
Ela dança com devoto frenesi ao som dos liquidificadores,
Eis a sina: chegar longe e mais alto ao pé de qualquer Paraíso,
A mente enjaulada que deseja brilhar a qualquer preço.


Nem pai, nem mãe ou pouco importa a maldita pátria,
Às favas à factícia vida que a deixava entediada e exaurida,
Entre tatuagens exóticas e piercings sobressalentes que mapeiam a epiderme,
Ela criou um mundo próprio tão íntimo, velado e inacessível.


Dançar, dançar até o corpo se canalizar na corrente para qualquer mar levar,
Uma entrega plena na dimensão de seus anseios e da alma em decomposição,
Basta de lágrimas perdidas! O amor é tão sólido como pó de vidro,
Amar hoje porque o amanhã não mais existirá (Quem sabe?).


Entre a fauna salivar de várias bocas unidas e agregadas aleatoriamente,
Lampejos de amores são encontrados e subtraídos na pista escaldante,
Não há regras para o gosto atônico da saliva alheia e pansexual,
Quem chega primeiro leva o sabor da lascívia quitanda amorosa.


Liberdade, liberdade, abra seus tentáculos sobre tanta gente!
Picadas alucinógenas enfeitam o azedume dos dias estáticos,
Ao som em delírio, ela grita alto como se espantasse seus espíritos,
Um exorcismo frenético que ameniza seus temores terrenos.


Mais um dose, um copo cheio de alguma coisa embebido no álcool virgem,
Não importa a procedência desde que possa mergulhar garganta abaixo,
A sede que sufoca na angústia que aglutina calafrios na espinha,
Embalada, seu coração se acelera como um motor de aeroplano.


Intoxicada com tanto êxtase do gozo avassalador em busca de Deus,
Ele a chama com uma descarga elétrica que percorre instantaneamente o coração,
Com olhares indiferentes, sua carcaça de cordeiro se desliga e estende sobre a pista,
Ali jaz uma bela morte que dança rumo às estrelas sob o recital do luar!

sábado, 26 de dezembro de 2009

Mensagem do Degredo


Aos cães que roeram minhas vísceras,
Aos cães que quebraram meus ossos,
Aos cães que mataram a sede com o meu sangue,
Aviso-lhes que não cairei em vão.


Aos cães que vampirizaram a liberdade,
Aos cães que profanaram os túmulos dos viventes,
Aos cães que vociferaram pequenas e grandes maleitas,
Aviso-lhes que meus joelhos não dobrarão facilmente.


Aos cães que manipulam a seta do destino,
Aos cães que se julgaram senhores do tempo,
Aos cães que ejacularam escárnio na cara de inocentes,
Aviso-lhes que a fé é maior do que o desespero.


Aos cães que interditaram a estrada,
Aos cães que roubaram as placas de sinalização,
Aos cães que defecaram no jardim alheio,
Aviso-lhes que o ímpeto do Amor ainda é maior que o ódio incontido.


Aos cães que selaram cartas anônimas,
Aos cães que despejaram gafanhotos,
Aos cães que mentiram em praça pública,
Aviso-lhes que não há bastilha que vença a razão do tempo.


Aos cães que vociferam uma tempestade de injúrias,
Aos cães que ladraram palavras de mau agouro,
Aos cães que polvilharam sementes da discórdia,
Aviso-lhes que não amputarão minhas mãos tão solenemente.


Aos cães que confabularam com aves de rapina,
Aos cães que desfraldaram a flâmula da morte,
Aos cães que agiram pela vã hostilidade,
Aviso-lhes que a vontade é maior que a indiferença divina.


Aos cães que carimbaram prontuários,
Aos cães que zelaram os portais do inferno,
Aos cães que manipularam a burocracia das penalidades,
Aviso-lhes que não terão o prazer da minha estada no manicômio.


Aos cães que pisaram na face de inocentes,
Aos cães que escarraram na boca dos famintos,
Aos cães que defecaram no prato dos despossuídos,
Aviso-lhes que cedo ou tarde até os mortos se rebelarão.


Aos cães que abrigaram no topo da arrogância,
Aos cães que vomitaram a sanha da crueldade,
Aos cães que explodiram sonhos e desabrigaram famílias,
Aviso-lhes que não há dor eterna que não resulte em salvação.


Haverá um tempo para a profanação,
Haverá um tempo para a indignação,
Haverá um tempo para a revolução,
Haverá um tempo para os exercícios de Paz.


Aos cães que caminharam nos limites da insanidade,
Aos cães que abusaram da miopia do mundo,
Aos cães que se autoproclamaram colossos imortais,
Aviso-lhes que haverá um momento que não mais reinarão nem no próprio canil.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Lâmina em Carne Viva (Memórias Tolhidas)


No interior enclausurado do quarto profundo,
Bem diante de um abraço acanhado do travesseiro úmido,
A pequena luz do abajur quebra a monotonia da escuridão,
Distante dos seus olhos: o que você fez com a sua vida?


Na súplica sacerdotal dos medos,
Na luta frenética pelo desvelo,
A fuga agressiva dos olhos suicidas,
Por que fugir com tanto ímpeto?


Sem palavras marteladas ou frases feitas,
Nada que possa justificar ou clarear,
Atos falhos e ações de incerta morada,
Feliz com seu lindo deserto de lâmina rubra?


Se a dor lhe consome dentro de um moedor de carne,
Se a vontade é acariciar os pulsos com os espinhos de uma rosa,
Se a mão carrega a pedra a ser mirada contra a cruz,
Então não reprima as lágrimas que tanto lhe mantém sedada.


Perguntar ofende em demasia: “ Amar não lhe cai bem?",
Sentir que uma única vida poderá ser significativa para alguém,
Atirar com a máxima sordidez pérolas pelas grades da janela,
A autofagia libertária lhe fez um convite ao orgasmo?


Julgar para ser julgado; às favas às veleidades alheias,
Mentiras concretas, verdades sem pressa ou temor rotineiro,
Caminhar entre cacos de vidro adentrando pela planta dos pés,
Quantos encarariam a face revelada de Mefistófeles?


Como é sublime a escravidão voluntária do cotidiano!
Convalescer com o notável riso amarelado do cartão de visitas,
Uma máscara dirige soluços singelos para camuflar seqüelas,
Então acredita que a vida é um pueril luzir pragmático?

Na sombra dos dias de degredo, injúria e abandono,
Até o entoar de um zumbir silencioso poderá agredir os ouvidos,
Doutrinar para si que o Amor é um sedativo de validade vencida,
Em tempo: Quem pretende se iludir na luz da agonia?

Grite, mas não venha com a omissão verbal digna dos covardes,
Orfandade? Não carece produzir tamanha falácia oceânica,
Observe ao seu redor e calcule quantas marés se faz uma canoa,
Por que se afogar em ridículos bancos de areia tão destrutivos?

Olhe para o céu: Será que seus lábios manifestaram um sorriso hoje?
Talvez tenha esquecido de como era o seu semblante no tempo que era feliz,
Doce ilusão narcísea! Consegue vuslumbrar o próprio vulto no espelho?
Cabe a visão distorcida do retrovisor: "- Quem é você?".

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Cálice (Veneno Subcutâneo)


Nada é tão autêntico cuja aparência já não estampou algum outdoor,
No horizonte prolixo das imperfeitas efemeridades sentimentais,
Seus doces olhos dissimulados estamparam mentiras e vaidade,
Tudo contribuiu para o desencanto, o desenlace e o autoengano.


Quem poderia julgar com precisão,
Os atos deliberados de cada um de nós?
Vitória ou derrota, um volúvel detalhe,
Se da vida nada levamos para o berço da lápide.


Um dia você se aproximou e me beijou,
Noutro dia sequer um gesto lacônico de adeus,
O Amor com uma caixa de leite vencida,
Coalhou, sangrou e não deu cria... Paciência!


Estão esqueçamos tudo o que foi dito,
Restou apenas respirar novos ares para o recomeço,
Não há lágrima que dure uma vida inteira,
Não há serpente que atormente o tempo todo.


Você foi mais uma mera miragem dentre tantas outras,
Um simples cálice desfrutado no limite de uma noite,
O corpo que perde seu glamour em poucas horas,
A futilidade das aparências em sexo banal e frágil.


Não aceito mentiras sem articulações,
Minta, mas minta com algum sentimento,
Suas verdades ocas são limítrofes cristais,
Você foi à verdade castigada em rubro desejo.


Nunca me enganei de forma tão voluntária,
A maioria das paixões sobrevive de pequenas burlas,
Os olhos que emanam da latente angústia,
Oculta o fel incandescente da mediocridade.


No fim dos dias, jamais desejaria a morte para alguém,
O ódio suicida é uma tormenta viesada e incômoda,
Sem muito esforço, estarei na apreciação a partir do camarote,
Sem pranto, naturalmente sua carne dourará silenciosa no limbo.


Olhos diminutos em pavio curto,
A tenaz expectativa de uma revanche,
Cortes na derme que pulverizam a alma,
A invisível dor unipessoal de pés calejados.


Não me venha com blasfêmias e riso plástico,
Vá, siga em frente com sua saliva de veneno,
No mar proliferam tantas tempestades repentinas,
Um dia sua nau encontrará o leito oceânico.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Asfalto Líquido (Esquinas Submarinas)


Mas pra que?
Pra que tanto céu?

Pra que tanto mar? Pra que?

("Inútil Paisagem", Tom Jobim)



Na madrugada de uma impiedosa chuva intermitente,
A rua é tingida com trêmulos lampejos de deficitária iluminação,
Toda a cidade é submersa em profundo e agitado breu,
Poucas almas viventes desafiam estar fora de suas ocas.


Com os pés encharcados de lama e resignação,
O caminhar assume um ritmo errático e combalido,
Sobre a cabeça somente existe a proteção de parcas estrelas,
Uma brisa mais forte respinga gotas ácidas em minhas vestes.


Alguns insanos automotores desafiam o temporal,
Outros minguados irrequietos protegem-se em abrigo para queimar pedras,
O vazio e o ódio enegrecem qualquer alma deserdada e esquecida,
Infernal, todos queriam também na Terra o que foi prometido ao Paraíso.


Na solitude da calçada esnobe, meretrizes oferecendo suas mercadorias,
A nata burguesa ergueu acintosas fortalezas para ocultar sua insaciável gula,
A chuva não perdoa mocinhos, bandidos, querubins e os compulsivos por sexo,
Sangue, água, dor e esperma se aglutinam na madrugada aquática e sem face.


Exausto e sem refúgio, os pés peregrinam sem cessar,
Sinto pesado o esforço para manter as pernas a trabalharem,
A umidade das roupas diminui drasticamente a temperatura corpórea,
A empreitada não será abortada por nada alheia a minha intrínseca vontade.


Ao longe, o soar esmaecido de algumas patéticas buzinas,
Arrogantemente, automotores espalham água poluía por toda a calçada,
Em nada adianta lembrar-se das mães de alguns desgraçados ao volante,
A narcísea cidade de papel hostiliza os vencidos e cospe em pobres diabos.


A noite segue em seu manto profundo e indigesto,
Nenhuma gota de álcool na boca ou tilintar de idéias na cabeça,
Impiedosa, a chuva chicoteia os olhos e desafia a visão,
Cair, correr ou suportar, quem ousa desafiar a insanidade?


Com as mãos banhadas na acidez violenta da indiferença,
Impávida e inconseqüente, a chuva prossegue sua rítmica procissão,
Vultos de pequenos roedores visitam lixos pulverizados por todos os locais,
Outros roedores bípedes acomodam-se entre lona e papelões nas fachadas comerciais.


Os passos se agitam acompanhando a intensidade da chuva,
Sem bússola, a estrada é como a corrupção humana que nunca finda,
Como a dignidade no ralo, em pequenas encruzilhadas os caminhos se perdem,
Não há rota segura, apenas a ilusão embolorada da honestidade alheia.


Não sei até onde irei chegar (ou como chegarei),
Agora o tempo não é mais um fator preponderante,
Um dia, uma hora ou por alguns minutos... A chuva cansará de jorrar,
Quem sabe será o momento em que o Sol resolva sair do seu cativeiro.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Amorfobia (Desvelo da Caixa Torácica)


Quem inventou o amor
Não fui eu, não fui eu não
Não fui eu, não fui eu, nem ninguém

(“Nem eu”, Dorival Caymmi)



Outro dia alguém me perguntou de um modo bem capcioso:

Afinal, o que seria um amor verdadeiro?

Provocação banal, ilusão infante ou estado de inação?

De prontidão e sinceridade, foi impossível pré-estabelecer...



Quem sabe se a indagação não estaria na sua forma inversa,

Para não cometer nenhum lapso, não se cria do Amor uma verdade,

Mas a partir de alguma verdade, seja possível cultivar algo mais nobre,

As razões para amar são inúmeras; a veracidade do amor, nem tanto...



Do platonismo ao fortuito pecado explícito: quem tem medo do Amor?

Que sentimento mais surrado nas carícias salivares dos amantes ocasionais!

Amor, amor, amor... Amamos amar a idéia do Amor,

E com menor intensidade, cultivamos as formas de amar.



Com quantas mentiras se constrói um edifício de argila?

Pilares de culpa cinzentada, blocos de rancor e argamassa da discórdia,

A chuva ácida que banha solenemente o lacre adiabático da alma recalcada,

Triste é o Amor afastado pelas mãos da intriga no catecismo da maldade.



Destroçado, ainda é possível resgatar o Amor?

Mesmo nos momentos mais insalubres, inexatos e inconsistentes?

Resistir às pequenas traições e o atroz formigamento cutâneo do tédio?

Altruísmo, generosidade divina ou lealdade: qual o sumo sabor da aprovação?



Há um tempo para semear os grânulos matriciais do Amor,

Há um tempo para resgatar o Amor refém do ódio compulsivo e doentio,

Forças diametralmente opostas se constitui em inflamável amálgama,

Instável tendência para a eletrização das partes e erosão da paixão.



Amor verdadeiro ou versátil sentimento de plástico?

As relações postiças que permeiam e criam vidas autônomas no cotidiano,

Palavras que maculam em forma de doces flores de papel salpicado,

O Amor partido entre lábios de sangue e beijos alcoolizados de fel.



A dor do não-amor é uma indelével atração à parte,

O Amor calcificado que petrifica cada milímetro do peito,

O ar funesto que preenche o vazio aterrador da caixa torácica,

Amor destilado em lágrimas que lampejam solitárias no oceano.



Quando em dado momento, alguém requenta um insólito "yo te quiero",

O medo da dor é ancorado pela orgulhosa estabilidade da razão,

O ego erguido ao cume mais elevado para autopunição da falsa proteção,

Amor é doença afável de voraz contaminação involuntária.



Na insensata batalha entre o altruísmo e a vilania,

Aos que temem a solidão crítica, decadente e agressiva,

Qualquer verdade que desatine entre a sanidade e a loucura,

Não será dada por nenhuma mecânica razão racionalista e pragmática.


quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Renúncia (O Cheiro do Sótão)


Na observância do calendário lembro que há quase um ano,
A última gota de sangue deslizou pelo ralo e se perdeu no limbo,
Da forma mais fria, lacônica e ingrata possível,
Na companhia do perfume de algumas pétalas de rosas.


Na madrugada perene que embalava pensamentos,
A inação lutava sem holofotes contra a inquietude,
Amores nus partidos como uma xícara ao chão,
Sob a forma de cacos pontiagudos havia uma maré de consternação.


Incrédulo, não poderia acreditar com tanta facilidade,
Que o vício do desejo sucumbisse diante da virulência do temor,
A quota suprema da coragem se evaporou como um fósforo queimado,
O anil que teimava reinar se acinzentou por completude.


No álbum de marcas indeléveis de desatinos e angústias atrozes,
Sua presença ainda não desvencilhou do inútil porta-retrato,
Não houve espaços para ódios fugazes ou revanchismos baratos,
O perdão nunca foi uma dádiva povoada de martírios.


No brejo dos dissabores adormecidos na boca,
O vazio entre os dedos ainda canaliza algumas lembranças,
Nada é trivial na superação da noite dos sentimentos refratários.
O tempo corrói, cala e consola todas as vãs palpitações.


O desencantamento se precipita por etapas,
Sem segredos maiores ou mistérios indecifráveis,
O calor do corpo é sentido em baixa temperatura,
Aquele olhar ainda permanece na memória da retina.


A renúncia é uma dor que adormece em braseiro,
Cauteriza e fecha profundos cortes sem maiores cuidados,
Porém, nada que possa ser maculado eternamente com fel,
Ausência, presença inimiga.


Com a janela aberta, o insalubre ar interno possibilita circular,
Renovar o oxigênio que se contaminou com a acidez do ambiente,
Na dura batalha para reconstruir castelos de grânulos de silício,
A disposição nem sempre vence o inevitável cansaço.


Ao apelar para o falso esquecimento,
As gotas de mentiras ficam na atmosfera,
Se a distância imposta foi o melhor amargo remédio possível,
Não desejaria saber qual seria a emergência do pior dos castigos.


Silêncio. Hoje não há mais nada a ser dito,
Apenas tocar a vida diante do certame vencido,
Olhar para o céu e respirar em busca de qualquer Primavera,
Ignorando a perda sentida: saudade, ponto final.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Flores do Aquário


Quando o silêncio falar por si e sem a intervenção de ventríloquos,
Talvez tudo possa a ser sanado de maneira menos estúpida e hostil,
Uma réstia de esperança que possa resultar uma forma menos mecânica,
Resgatar algum nível de sensibilidade nos braços do abismo.


No labirinto de metáforas ausentes e áspera concretude,
As vítreas paredes são diminutas, pétreas e secas,
Os ombros vencidos pelo sabor da areia e do sal,
Aporte malogro de pústulas, inquietações e náuseas.


Quem teme o futuro,
Não vive o presente,
Ilude-se com o passado,
Fiel hóspede do aquário.


Quem ejacula em demasia veneno e rapinagem,
Pode se tornar tão previsível quanto o pôr-do-sol,
O pragmatismo monocromático do cotidiano,
Cercado de redundâncias por todos os lados.


Segue o que é limitado, tosco e presumível,
A emoção incontida num carimbo burocrático,
Mentiras escarradas com fel a serem louvadas,
O senso-comum que distorce e contamina.


Os dias se arrastam no interior do confinamento,
Reclusas, as palavras obedecem ao toque de recolher,
O vazio toma uma dimensão ampliada dentro da redoma,
Os sentimentos ficam machucados, lacrados e tolhidos.


A cela de vidro vai além de uma pálida caricatura,
Suas paredes dizem muito mais do que possam aparentar,
Deixam cicatrizes subcutâneas e respingos na alma,
Chagas invisíveis que coabitam o sabor do humor.


Quantas imagens foram tingidas a ferro quente,
O cheiro de pólvora seca que brotou do gatilho inexato do revólver,
Não se encontra uma definição para a ansiedade,
Apenas a insólita dor para transpor o imponderável.


Qual batalha se deseja guerrear?
Quem se prontifica a escolher a própria missão?
Ilusão, fracasso ou destino... Redoma de vidro.
A pele enrijece e o corpo é entregue ao vento.


Há dias que apenas desejamos um cálice de Paz,
Sangue embriagado para suportar o cárcere à revelia,
O azedume aromático das flores de acrílico,
Indecifráveis fac-símiles de mensagens do aquário.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Impertinências (Hostil Hiato)


And if God will send a sign
And if God will send his angels

Where do we go?

(“If God Will Send His Angels”, U2)



O que embala o corpo é a ilusão,
Sinal que tende a fomentar a couraça,
Soerguimento do ego em batalha titânica,
Profecia banal que não se concretiza.


Chame da forma que desejar,
Anuncie aos quatro cantos do mundo,
Escore bem a porta de entrada e abra as janelas,
E cuidado para não congelar os dedos diante da grande espera.


Aborde algum tema específico,
Aborte algum punhado de racionalidade,
Lute por algo que possa ser merecido,
Adormeça na rua do descompasso.


O beijo de tarântula não lhe cai bem,
O abraço de alicate fragiliza alguns ossos,
A boca encharcada de fel escorre percevejos pelas lacunas,
A mentira é a morada infame dos velhos jornais.


Quem segura sua mão no vasto horizonte de solitude?
Quem aperta o laço de juta envolto do pescoço?
O suicídio é redenção ou covardia?
Liberte a alma dos afazeres do ego.


Não arquive as imundas palavras simplistas,
Esquarteje o cinismo da piedade e armazene em sacos de lixo,
Abrigue-se durante a noite áspera de relâmpagos,
Sem saída, mergulhe na essência das dores latentes.


Onde está Deus quando a vida é uma mentira?
Onde estão os anjos quando a morte é outra mentira?
O que o Diabo esconde no hostil hiato entre a vida e a morte?
Não existem respostas suficientes para sequer encher um copo.


Hemodiálise, o sangue ainda corre em veias e artérias,
Flácidas, as pernas ainda sustentam o corpo exausto,
Amarelado, o sorriso é inteiramente débil e postiço.
Inútil, o sexo é uma veleidade de frígida impotência.


Decore algum vocabulário e imprima no diário a sua metafísica,
Meia dúzia de palavras tolas e povoadas de lugares-comuns,
Comovidos, talvez os anjos acedam algumas luzes no velório,
Por pouco tempo... Muito pouco tempo!


O que você se torna quando nada mais lhe pertence?
Partir, caminhar e não progredir,
Patinar sobre a infinitesimal película entre o todo e o vazio,
A vida é água à zero grau celsius.

domingo, 8 de novembro de 2009

Súplicas (Tardio Contágio)


Escravos de Jó jogavam caxangá
Tira, põe, deixa ficar...

(Cantiga de Roda)



Na primeira vez que veio até a mim,
Você disse que me amava tão fortuitamente,
De prontidão eu não tinha motivos para acreditar,
Afinal, o hemisfério racional diz que palavras sem atos são tão vazias.


Passou-se o tempo e as mudanças de fase da Lua,
O Sol levantou-se impávido e o trânsito demente ruía,
Distante, ao meu lado você caminhava tão isolada,
Queria entender o motivo pelo qual eu não lhe sentia.


Olhar, estar e não cantar,
Aproximar, sorrir e não cativar,
O vulto que anda sobre as águas,
A sombra gélida que não aquecia.


Da segunda vez você novamente se aproximou buscando intimidade,
Falou alguma coisa sobre comezinhos de Amor e fragmentos de ternura,
Sua fala parecia tão irreal, tolice simplória e aparência sutilmente mecânica,
Mais uma vez eu não acreditei e palidamente caminhamos em frente.


Desconfia-se tão rapidamente dos olhos que enfeitiçam,
Receia-se das palavras salobras sem endereço exato,
No breu noturno todas as imagens se escondem na penumbra,
Como seria possível afirmar sobre a claridade do Amor?


Quanto ao desejo que silenciosamente suplica no vácuo,
Muitas vezes não é sentido pela leveza do toque se aproximando,
Cegueira, vaidade ou gotas exauridas de mordaz desprezo,
Ninguém sabe explicar ao certo o motivo da ausência.


Da terceira vez suas palavras quase convenceu meu peito,
Senti até mesmo um carinho atípico vindo da sua direção,
Naquele momento queria acreditar que talvez tudo pudesse ser verdade,
O medo da desilusão era maior do que o calor espontâneo do afago.


Tantas palavras são truncadas na veleidade dos ventos,
Juramentos e promessas bucólicas esvaziam-se no tempo,
Já testemunhei tantas pérolas que engordariam as paredes de um baú,
Vocábulos estilhaçados que embriagaram as bordas bolorentas de vários diários.


Nunca fui cúmplice de inverdades veladas e mentiras banais,
Também contribuía para não flexionar a haste do orgulho,
Não entendia que a indiferença fosse à mordaça dos sentidos,
A paixão se ergue através de flores, pedras e tacapes.


Da derradeira vez ouvi sua trêmula lágrima segurando minhas mãos,
Naquele momento senti tão forte emoção, doçura e desespero,
Seu Amor era tão sonoro, intenso e verídico tanto quanto desconfiava,
Agora só restou a dor e um punhado da terra que abraça o seu corpo.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Precessão (Caminhos Inexoráveis, Fuga Impossível)


I thought that I heard you laughing
I thought that I heard you sing
I think
I thought I saw you try (*)

(“
Losing my religion”, R.E.M.)


Se hoje é feriado,
Amanha será fardo,
Se hoje é concepção,
Amanha será parto.


Se hoje é o que se cospe,
Amanha será o que frita na testa,
Se hoje é o calculista orgulho,
Amanha será o cúmulo do desespero.


Se hoje é um tapa na cara,
Amanhã será a lâmina na carne,
Se hoje é a mão que emprega leves afagos,
Amanhã será a cara amarrada de cobranças.


Se hoje é uma bituca de cigarro,
Amanhã será a platina do nariz,
Se hoje é a euforia do vapor na roda social,
Amanhã será a fuga ensandecida do internato.


Se hoje é o vidro levantado no cruzamento,
Amanhã será um inesperado cano apontado na boca,
Se hoje é a mão erguida em sua direção,
Amanhã será o sangue alheio no asfalto.


Se hoje é a purificação pela afetividade,
Amanhã é o funeral pelo evasivo ódio,
Se hoje é sexo aprazível e libidinoso,
Amanhã será apenas um ato de caridade.


Se hoje é uma mesa farta,
Amanhã será obesidade,
Se hoje é uma pontual ruga,
Amanhã será a trilha do bisturi.


Se hoje é amor e amizade,
Amanhã será um número na agenda,
Se hoje suscita uma esclarecedora verdade,
Amanhã será um oceano de blasfêmias.


Se hoje é o leite derramado,
Amanha será inundação,
Se hoje é um caso isolado,
Amanhã será o holocausto.


Se hoje é o que não aparenta ser,
Amanhã é tudo o que não poderia ocorrer,
Se hoje há os que se elevam impondo a coerção,
Amanhã será os que se inclinarão pelas circunstâncias.


Se hoje é Sol,
Amanhã será Prozac,
Se hoje é liberdade,
Amanhã será cárcere.


Se hoje é bonança,
Amanhã será devastação,
Se hoje é claridade,
Amanhã alguém ordenará: “Apague a luz!”.


Se hoje é o mar dadivoso de certezas,
Amanhã será o pavimento de inquietações,
Se hoje ainda conseguir respirar com desenvoltura,
Amanhã será de grande valia o oxigênio arquivado.


Quem zela pelos seus medos?
Quem corre utilizando suas pernas?
Quem ensurdece a sua cegueira?
O que será do espelho quando você enterrar todos os mortos?


Tantas voltas que a esfera tende a circundar,
Tantos caminhos giram sem sair do mesmo lugar,
Tantos corpos envolvidos em nós que atam e desatam,
Quem poderá decifrar os ritos da inexorável existência?



(*) NT.: Eu achei que ouvi você rindo,/Eu achei que ouvi você cantar,/Eu acho que pensei ter visto você tentar...

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Clivagem (Ilusões Cotidianas)


Sweet dreams till sunbeams find you
Sweet dreams that leave all worries behind you (*)

("Dream a Little Dream of Me", Fabian Andre & Wilbur Schwandt)



Se a vida fosse um emaranhado de pedras,
Toda explosão seria benéfica,
O cogumelo atômico seria uma benção,
O caos regeria uma salutar nova ordem.


Se toda a felicidade fosse um mero esboço de banguelo sorriso,
Todos morreriam estampados com a histriônica gargalhada do Coringa,
As fotonovelas seriam um altar para os ingênuos, crentes e fanáticos,
As famílias famélicas animariam músculos faciais para esquecerem os seus estômagos.


Se toda a realidade fosse tão somente o que se apresenta na tela,
A vida e a morte seriam apenas lampejos burocráticos,
As guerras seriam intermináveis, o amor descartável e a Paz obsoleta,
O sangue jorraria indiferente pela calçada.


Caso prevaleça o destino humano em seu afã de barbárie,
A devastação será iminente, insana e impiedosa,
A morte se apresentará como um fastidioso presente divino a ser merecido,
O elixir da dor se delineará como um mero instrumento de acompanhamento.


O que haverá atrás da porta,
O que esconderá debaixo da cama,
Quais males a razão poderá sublimar,
Se o inconsciente der vazão ao primitivismo humano?


Tantos carros trafegam irrequietos pela estrada,
Uns atropelam sistematicamente tal como derrubam pinhos de boliche,
Outros batem como se estivem num sangüento parque de diversões,
Correr, fragmentar, morrer... A vida acéfala do asfalto.


Quem não se recorda daquele anjo que desceu a Terra?
Porta-voz de um atípico cancioneiro de Paz, justiça e fraternidade,
Tanto irritou a cobiça desmedida dos homens e a sede de ódio fortuito,
Por ecoar blasfêmias pacifistas, foi punido com o corpo batizado de ferro e madeira.


A projeção viril e volátil de um elevado e cobiçado progresso material,
A vida refém do hipermercado de mil e uma utilidades banais,
Quinquilharias ao alcance das mãos pela benção do cartão de crédito,
A angústia pela diversidade quase ilimitada de opções.


Quando a absolutamente a vida perde a razão de ser,
Um mundo ostentado de sufocante materialismo perde o significado,
O cotidiano do homo faber torna-se o seu próprio cárcere,
A desilusão de ser o que sempre desejou alcançar.


Agora, quando o tufão passar pela vida,
Abrigue-se num lugar razoavelmente seguro,
Deixe a velocidade levar tudo que lhe possa pertencer,
E preserve a alma para os ásperos e insalubres dias de desolação.


_________
(*) NT.: Doces sonhos até os raios de sol te encontrarem/ Doces sonhos que deixam todas as preocupações para trás

domingo, 18 de outubro de 2009

Vasectomia (Retalhos de Papel)


A sombra que assola a cabeça,
Deixa os dias mais turvos e instáveis,
Penumbra que desencadeia um estado letárgico de coisas,
Insatisfação e obsolescência do martírio cotidiano.


Da manhã cinza e nublada,
Aclimatada por uma atípica Primavera,
Desorganizada entre lençóis e livros,
O lampejo insone da irrequieta persistência.


Observar o tempo é como velejar em alto-mar,
Não há Norte; nem os sinais do Sul,
Acima o céu e abaixo uma dimensão inexata de água,
E tanta água que suscita a dúvida entre o afogamento ou a insolação.


Imponente, a janela continua sendo a porta do mundo,
Delimitada, hostil e ainda assim paira como único subterfúgio,
Hiperespaço de um universo de indigesta assimilação,
Fuga da realidade para além do alcance das mãos.


Projetar os dias e ceifar a espera,
Castrar a desesperança e animar-se com o vazio,
Riso catártico e palavras de resistência,
Tudo para não sucumbir em vão.


Um olhar sobre o horizonte,
Um tijolo adicional na porosa muralha,
Erguer-se como forma de sobrevivência,
Erguer-se do chão em dias de resignação.


Os olhos não desgrudam dos ponteiros,
Sobrevida fragmentada de um ciclo tedioso,
Cada minuto esconde uma dimensão continental,
Esperar, observar, respirar...


Não se deve deixar o corpo atirado no asfalto,
Alimento gratuito de abutres e demais predadores,
Não facilitar a sobrevivência de vis criaturas,
O Inferno é a ilha perdida da solidão.


A resistência é talhada em diamante bruto,
Preciosamente lapidada com fome de libertação,
Não há sangue ou vísceras que sucumbam à dor,
Levantar a cabeça em leito de tempestade.


A secura insaciável entre lábios,
A impaciência impertinente das horas,
O caminho contra os veleiros do tempo,
O martírio particular em conta-gotas.

sábado, 10 de outubro de 2009

Vazio Colérico


Você sabe tanto quanto eu,
Não há verdade eterna ou absoluta razão,
Ninguém sabe quantos tijolos pavimentam a estrada,
Do destino apenas conhecemos o princípio.


Se a verdade foi feita de refém,
Não queira alimentar o ego com ilusões banais,
Quem chega depressa espera pôr a mesa,
Quem cochila encontra os pratos vazios.


Não há chazinho adocicado para alma em devastação,
Não há álcool que cure miraculosamente os males,
Queremos tudo ao mesmo tempo para ontem,
A espera angustiada do microssegundo.


Do espelho reluz a fragmentação do ego,
No interior da íris a turbulência do inconsciente,
Qual fagulha que desencadeia a centelha?
Não há Paz que resista a uma permanente escravidão.


O Amor virou uma abstração comestível no horizonte das utopias,
Confortado num pote de vidro e singela fita colorida,
Após o consumo a embalagem é reciclada,
Contabilidade afetiva: Ama-se um, dois, três ou mil.


Os lábios trincados têm insosso sabor dietético,
A paixão figurativa com data de validade no rótulo,
O consumo de iguarias e querelas sentimentais,
No videoclipe, a fugaz porosidade do coração.


Há um vazio no meio do universo,
Fossa abissal preenchida de ar frio,
Tanto riso que não encontra graça,
Sangue, soluço e overdose de Prozac.


Em bancas de jornal tantas revistas coloridas,
A promessa de felicidade plena e instantânea,
Emagreça, corra, compre, goze e sorria,
Há sempre uma câmera para a vigília dos passos.


A assepsia do contato humano e gestos burocráticos,
Egocêntricas cidades em suas redomas de vidro,
O self-mundo encantado da autonomia de Narciso,
A caricatura patética do empreendedorismo umbilical.


A exuberância da pragmática superficialidade,
A violência dos egos em conflito e o medo atroz,
Mentiras apáticas diante da multidão do vazio,
Cada um atado à ilusão da feroz velocidade para o grande nada.

sábado, 26 de setembro de 2009

A Menina na Janela


Por que é que vocês acham impossível crer que Deus ressuscita os mortos?
(Atos 26:8)



O que faz aquela menina na janela,
Que observa rotineiramente através da cortina,
Vulto de passos e automotores que trafegam diante de si,
Toda uma vida além do seu imóvel recinto.


A janela é o quadrilátero luminescente do seu mundo,
A luz que clarifica e dá algum alento à sua existência,
Vento que adentra a sala e sopra com suavidade seus cabelos,
A alegria e a tristeza estampadas sutilmente em seu semblante.


A menina solitária feita de refém das articulações mecânicas,
Longos fios sobre sua cabeça e um corpo de arquitetura franzina,
Olhar fixo e profundo que circula pelo infinito vazio,
Mãos atadas nas esteiras do movimento circulante.


Um dia sentia a brisa sobre a areia dos seus pés,
Uma pequena corrida na orla onde se podia abraçar o mar,
Passos que se erguiam para a leveza de sonhos e liberdade,
Conduzidos por uma satisfação sem destino certo.


Sentada, seu corpo se fragilizou bem longe da plenitude dos pássaros,
Tamanha sensibilidade que foi roubada do seu íntimo,
Grãos de areia agora não pode mais sentir como outrora,
Tocar o chão se tornou a maior de todas as suas vontades.


Aquela luz proeminente da janela dizia-lhe tanto,
Um sopro de liberdade enchia seu peito de um comedido alívio,
A textura da irradiação solar sobre seu rosto como uma benção divina,
No alto da parede reluz um crucifixo e a sensação que precisa estar viva.


Não se sabe quanta estupidez carrega a humanidade,
Muitos seres mesquinhos que ceifam a vida inocente,
Talvez o Mal seja o espectro imaterial da dor,
Quem tirou os seus passos ainda pisa livre em solo.


Não há mais que sustente uma lacuna,
Reaprender a viver é o significado da Fênix,
O sorriso discreto ainda pulsa no canto dos lábios.
É a sutura que fecha sua cicatrizes terminais.


Justa ou injusta, a vida é uma janela enigmática,
Da cadeira, ela está sempre pronta a decifrar,
Quem tem a seiva da vida provoca a dor alheia,
E dor é tudo que a menina não deseja ver pela janela.


A vida passa na janela e no roteiro pragmático do relógio,
Ela não desiste e faz das lágrimas seu colírio,
Reviver a percepção do colorido diante do cinza,
Aguardando para que seus pés possam novamente sentir o chão.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Um em Dois


No tempo onde tudo era possível,
Você caminhava descalça pelo jardim,
Sentia a suavidade do aroma das flores,
E a verdade sobre a vida era de via única.


Não havia desentendimentos ou desconfianças,
Sem o cultivo de olhos fechados ou mãos cruzadas,
Sobravam braços abertos e sorrisos equatoriais,
O Amor e o desejo eram elementos ternos e únicos.


Acenávamos com vitalidade para a Paz,
O calor dos afagos e os olhos brilhantes,
Mãos táteis sobre a aquecida superfície da pele,
Sinais exalados de longa duração e profundo apego.


Como nada é tão eterno como tanto ansiamos,
Então veio a guerra, a fome e o desvencilhamento,
Os corpos secaram com a frieza dos sentimentos,
A sintonia desconexa entrou em agressiva arritmia.


Os sinais passaram a não serem mais ouvidos,
A atenção foi pouco solicitada e até mesmo desprezada,
O desconhecimento mútuo foi se avolumando,
Em cacos, os pratos se estilhaçaram ao chão.


As palavras ventilavam como bolas de fogo,
Queimando nossas mãos e criando nódulos,
A esmaecida razão foi posta na geladeira,
A injúria se transformou na nova ordem.


A partilha se emudeceu em desabrigo e solidão,
Os vocábulos castrados se polvilharam em indiferença,
A cegueira incandescente conduziu a união para o cárcere,
O campo de centeio se transformou num deserto alheio.


Como desconhecidos para os olhares em trevas,
Devastados pelo rompimento de promessas primárias,
Cada um por si e o maremoto afixado na jugular de todos,
Blasfêmias ceifando o que outrora encobriam os corpos.


Distantes, os frágeis castelos não resistiram aos ciclos da maré,
Talvez a correnteza em algum momento possa novamente unir,
Amenizar o lastro perdido do desejo silenciado e incólume,
Quem garante a sobriedade da Paz?


Um dia o céu é tingido de um celestial azul,
Outrora é repaginado de um fosco vermelho,
Para finalmente ser desbotado num poluído cinza,
Quais são as cores que você sempre quis?

sábado, 19 de setembro de 2009

Agorafobia (Esperando a Primavera)


Aprendi com a primavera a deixar-me cortar.
E a voltar sempre inteira.

(Cecília Meirelles)



Qual a cor dos seus olhos sem abrigo,
Quando fechados com zelo tão profundo?
Qual a dimensão exata do seu umbigo,
Quando dá uma volta inteira no mundo?


Quais são as noites que anseia se banhar após o amor sem desejo,
Desinfetar o seu corpo desnudo para não mais voltar?
Quais os lábios que são desprezados com a mentira do seu beijo,
Se a sua boca é um insensato invólucro adiabático a reinar?


O impávido lacre de indomável fortaleza,
São paródias irrisórias de papel fosco e rimas fáceis,
Cante seu grito de lamento como se fosse um uivo de guerra,
Faça de suas lágrimas uma flâmula de resistência na alcova.


Veja que o mundo não acabou com a sua ausência,
Os dentes que restaram ainda estão no lugar,
O sangue também circula nas artérias e segue jorrando nas veias,
Apesar de que os pratos e talhares ainda estão sobre a toalha da mesa.


A voz rouca é pouca,
A saliva salina é fel,
A pedra atirada é ira,
O fluído derramado é liberdade?


A mentira pregada nas sensações cutâneas,
Outrora perdida, talvez algum cálice aflore a libido...
Quem sabe alimente a dança das pernas entrelaçadas ao relento,
A batalha dionisíaca travada em campo aberto na cidadela de Sodoma.


Não leve suas reses para pastarem nas gramíneas da luxúria,
Não ouse fingir a soberana e debochada emancipação,
Lembre-se que os olhos denunciam logo na primeira clivagem,
Não resista a si mesmo: pule!


Deixe a cabeça pender em queda livre,
Amplifique a abertura de suas entranhas,
Grite com o silêncio dos lençóis úmidos de suor,
A culpa é sempre o enfermo palco do inconsciente.


Mire na liberdade dos pássaros no horizonte,
Atire seu corpo sem viés através da janela,
Abrace tudo aquilo que não pode ser alcançado,
Flutue no limítrofe espaço entre o imaginário e o impossível.


Enlouqueça sem desejar recuperar a via da sanidade,
Sinta a acidez do desapego e a volúpia da devoção,
Incinere lentamente as ilusões da caixa de Pandora,
Renasça da mentira de tudo aquilo que foi batizado em vida.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Vermelho (Rubro Rito)


A mulher que sangra,
Segue mais um ciclo que se fecha,
Para recomeçar invariavelmente um novo percurso,
Até nas próximas semanas encontrar o mesmo precipício.


O ciclo natural dos ritmos sensoriais,
As indigestas dores indesejadas de ocasião,
A inevitável pulsão de vida em berço de morte,
Canalizada num horizonte de hostis reentrâncias.


A chave milimetricamente fora do seu devido lugar,
O copo em desuso fora da pia,
O lixo inoportuno caído ao chão,
Tudo é um motivo para um temporal imediato de ódio.


Todos são culpados no recinto do lar,
Todos são inocentes no recinto do coração,
A cefaléia cortante que atormenta o dia à espera da alcova,
Ninguém entende, ninguém precisa entender...


Sob a temperatura da superfície solar,
Uma atmosfera sufocante causa claustrofobia,
Oxigênio! A ansiedade por um ar puro e fresco,
Deus! Por que carregar esta cruz?


Não!... Não chegue perto!
Deixe o corpo na impossível Paz!
Sirenes agressivas dominam os tímpanos,
O que é que estou fazendo aqui?


Picos mordazes de profundo estresse,
Suor frio e algumas preocupações tolas na cabeça,
Cansaço! Quem é que entende isto afinal?
Respirar! Quisera se fechar com um lacre em si...


Destruir o que não se pertence,
Estilhaçar todo o mal com as próprias mãos,
Desce o ciclo lisérgico da normalidade,
Renasce a aura da culpa e uma gota de lágrima.


Ama-se, ama-se demais,
Odeia-se, odeia-se igualmente demais,
Caminho bom, caminho mau,
Ciclo que se fecha e se resgata.


Vida ou sofrimento?
A eternidade da mulher que sangra,
Seja no corpo, seja na alma,
Ciclo que é vida também se aglutina em tormenta.


Ar úmido! Óvulo de vida,
Ar seco! Óvulo de dor,
Caminhos de Paz, prazer e angústia,
Vida e morte num elo dicotômico.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Porto Triste (Um Rio na Praça)



Aparente cidade de tranqüila serenidade,
Abrigo de grande história narcísea,
Palco que ostenta as resistências de um orgulho,
Vaidade sibilante do povo gaúcho.


Cidade de antigos casarões e desabrigados sem ocupação,
Envelhecida pelo tempo corrente e desemprego fatídico,
Hoje lar de um comércio varejista e mercadores ambulantes,
Multidão de transeuntes trafegando a esmo.


Passeio tranqüilo de um ponto a outro,
Entrando e saindo de uma loja qualquer,
Nada tão relevante para se adquirido,
Apenas uma chuva intermitente encharcando os sapatos.


De repente, num raio de poucos metros,
O que seria de tão interessante e desprendesse tantos olhares,
A eclosão de um punhado massivo de transeuntes,
Se postando num quase círculo ao lado da Praça.


Bochichos e vozes amiúdes se avolumavam na atmosfera,
Uma, duas, três viaturas da ordem pública fazendo sentinela,
O que será? O que seria de tão interessante na cidade alegre?
Um mendigo, um acidente ou um inusitado espetáculo?


No lastro do “efeito manada” com recortes de um teatro de hipnose,
Tentativa de aproximação entre tantas outras cabeças,
Ainda não dá para ver! – maldita natureza bisbilhoteira humana!
Assim era digno de prefixação: a curiosidade assassinou o gato?


Enfim, a resistência é recompensada,
Uma lacuna se abre diante da multidão,
Mas o que é isto afinal?
O rio Guaíba entrincheirado em plena praça?


Acompanho o curso do filete rubro na calçada,
Um corpo caído sobre uma poça de água suja,
Um cobertor velho encobrindo sua cabeça e tronco,
Ainda não pensei na tétrica tradução para a dantesca cena.


Vozes moribundas vagavam pelos cantos:
“Era ladrão?”, “É ladrão!”,
Um bradava: “Tá morto, era ladrão!”,
Outro sentenciava: “Quem deve, paga!”.

Quem viu? Briga fortuita ou assassinato de aluguel?Afinal, quem era?
Questões que se umedeciam na chuva impiedosa.
“Não vi, não sei, não conheço...”, palavras que repercutia no vazio.
Dezenas de pessoas e todas sem olhos.


Ao lado da praça de um rico folclore,
Na aproximação no majestoso Mercado Público,
Jazia um desconhecido cercado de ecos insólitos:
“Tiro na cabeça! Bala no presunto!”


Na típica insanidade dos viventes da “cidadania do bem”,
A barbárie não escolhe fachada e não encontra perdão,
Em São Paulo, Rio de Janeiro ou na velha Porto Alegre,
A indiferença é a marca da extrema maldade.


Quanto vale a vida senão um filete do Rio Guaíba,
Da janela tudo são pontos de luzes e ao lado uma turbulenta Paz.
Aí embaixo somos nada,
Aqui em cima apenas somos tudo o que somos.



(Vôo JJ-3501, Porto Alegre-São Paulo, 12 de setembro de 2009, 20h30min)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Letargia (Amnésia Cotidiana)


Sob o luar inteiramente sem propósito,
O manto negro que galvaniza a cidade,
Fechando mais um novo dia de velha rotina,
O corpo esperando com avidez o seu descanso.


Os dias transitam nas engrenagens dos sentidos,
Um idêntico mesmíssimo recorte é assimilado,
Com ou sem cores, tudo se repete milimetricamente,
Num cotidiano sem surpresas ou transfusões sanguíneas.


As linhas são anestesiadas com o mesmo script,
Sem demora, sem outrora, sem inquietações,
Tudo da mesma forma que dantes,
A circular viagem diária dos ponteiros.


Quem sou eu?
Pouco importa para a vida que segue sem vestígios,
Os rastos são tão bem apagados para qualquer conhecimento,
Lápis sem grafite no livro de páginas em branco.


Seguir o que está dentro do cercado,
A liberdade com perímetro limitado,
Nada lá fora parece ser interessante,
Subterfúgios para que o mundo se exploda!


Egoísmos, fragmentação e fragilidades,
A cabeça baixa com uma sinfonia zunindo,
A busca desesperada pelo lento repouso da pressão,
As paredes do mundo se estreitam lentamente.


Claustrofobia na cidade da solitude indiferença,
Tic-tac: segue o relógio a avisar do tempo que nunca finda,
Tic-tac: hora para dormir, hora para acordar,
O refúgio do semblante no espelho é a única pátria.


Consumo além do limite do cartão de crédito,
Comprar o que se deseja e o que nem se imagina,
O saciar insaciável das veleidades e do status a qualquer preço,
O brilho do farol e o gozo radiante na agonia da cidade-zumbi.


Viva o Grande Nada: o mundo-umbigo decreta feriado,
Enfim, eis a felicidade do “meu” dia de ser feliz!
Uma aura encantada para satisfazer caprichos e delírios avulsos,
Até o Amor se despedaçar sobre o travesseiro.


Rotinas cotidianas movidas a uma maré de lágrimas ocultas,
A cidade-pálida que ilumina, ilude e adoece,
A letargia que toma forma e promove a sobrevivência,
Quem se importa?

domingo, 23 de agosto de 2009

Flores do Ralo


Suspiros centrados e cabeça ao longe,
Aqueles pensamentos não saem da mente,
Um misto de saudade, angústia e delírio,
A manhã que se inicia tão vazia.


Os inimigos se clarificam em surdina,
Rosnam do alto de suas prepotências,
Lá estou a observar as cenas de mesma rotina,
O tempo avança com tanta áspera sutileza.


O Amor que passou,
O corpo que esfriou... Venceu, venceu!...
Erguer a cabeça e olhar ainda fixando o horizonte,
O peito em fé agüenta mais algumas empreitadas.


As palavras são resgatadas na palma da mão,
Rotas de fome assimétrica esboçadas no papel,
Medidas de lembranças e recordações díspares,
Para depois serem rasgadas e esquecidas.


Quando as indagações são ascendentes,
Tornam-se maiores que quaisquer certezas,
É bom se acomodar num leito distante e avulso,
E não deixar que a ansiedade dilacere a razão.


Nada é tão volátil ou pernicioso,
Do que o manejo insensato da memória,
Do que ansiar ou reificar quimeras verdejantes,
No caleidoscópio de sensações flutuantes.


O dia sai da rotina,
Quando nos remetemos a verdades incontidas,
Muitos preferem o silêncio ou a omissão,
Data vênia: não é salutar enganar os próprios olhares diante do espelho!


Para quem tem a cabeça pesando toneladas,
Tantas máculas atiradas em almas inocentes,
Que possa encontrar logo o seu cálice de cicuta,
E deixar logo este mundo menos atormentado.


Alguns gritos ecoaram silenciosos nos muros,
Ninguém para ouvir ou mesmo sentir alguma falta,
Do habitat hostil do coração apenas guarda bons momentos,
E que o resto seja aspirado para dentro do ralo.


Meu caminho é de sal,
Mentiras apenas servem para compor a paisagem,
Formar pedras pontiagudas a cortarem meus pés,
É assim que agem as flores do ralo.

domingo, 16 de agosto de 2009

Linhas Descontínuas


Dos caminhos desta terra,
Tantos passos foram dados na estrada,
Sem saber ao certo qual roteiro a seguir,
Amores, medos, fracassos e bolhas nos pés.


No quilômetro da saudade,
Não há retiro que possa confortar,
Os primeiros raios anunciam um novo dia,
E tudo se ilumina como o ciclo das ondas no mar.


No alto de uma cruz do tamanho de nossas querelas,
Renunciamos a todos os pecados e nos apegamos aos orixás,
Com os pregos trincados da sensação de alguma culpa,
Tantas tolices são empurradas sobre as costas do pecador!


Não há muitas verdades cintilantes no chão da minha pátria,
Há mentiras suficientes para transbordarem numa privada,
O Bem e o Mal se relativizam na mediocridade cotidiana,
A fé é cega e os cortes são profundamente sentidos.


Louvamos com omissão tantas canalhices,
Aplaudimos o generalíssimo consenso,
Sorrimos com a boca banguela para a estupidez,
Acenamos avidamente para a solidão.


Um dia a casa cai,
Noutro dia também,
Acordar e dormir são gestos unívocos,
Os pensamentos nunca cessam realmente.


O barulho de carros e cães invade as ruas,
Freios e algumas buzinas à azucrinarem os viventes,
O silêncio é interrompido sem habeas corpus.
E as reentrâncias do dia renascem.


Uma luz fraca invade o quarto moribundo,
O sono que não se abrigou; agora dissipou de vez,
Num respiro profundo em febre terçã,
E os pés saltam para fora da cama.


No rádio uma canção se mescla com outra,
Um ruído quase intermitente acompanha o ambiente,
Os olhos mapeiam um rosto pálido no espelho,
Realidade e inconsciente são uma construção em amálgama.


As palavras são aniquiladas entre os lábios,
A boca se torna um abrigo desértico,
O frio acompanha os passos pelo corredor,
E seguimos em frente para o mesmo cotidiano.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Espinhos Alados (Injúrias e Fé)




O que não me faz morrer me torna mais forte.
(Friedrich Nietzsche)


*


O mundo não acaba aqui,

O mundo ainda está de pé

(Manoelito Nunes e Dalvan)


*

Acalanto, noite fria e verborrágica,
A lua como um painel do cenário de Dante,
Ruas pobres, vazias e sem almas vigilantes,
Alguns esparsos murmúrios excitam sua própria orquestração.


Aos abutres que sorrateiramente sobrevoam o Céu,
À espreita da carne fresca para se deliciarem,
Dos meus ossos não encontrarão fartura,
Nada deixarei para deleite dos alcoviteiros de Beemot.


Aos abutres que zombam em surdina e copulam com súcubos,
Planejam conspirarem contra tudo que não esteja dentro da “ordem”,
Saciar a bendita sede pelas almas em consternação,
Não esperem contribuição passiva de minhas mãos.


Aos bastardos filhos alados de Gehenna,
Lembrem-se que a noite serve de camuflagem para todos,
Entre patrícios e plebeus todos são irrigados com sangue,
Das minhas artérias não servirão de palco para nenhuma fonte luminosa.


A solidão do silêncio abafado sob o eco de risos dos íncubos,
As mentiras dignas de Belfegor soerguida à sete palmos,
Os olhares insaciáveis dos invasores à espera dos apontamentos de São João,
Nada assume maior importância do que a batalha hercúlea da mera sobrevivência.


Quanto sangue do corpo poderá jorrar?
Quanto músculo exposto é passível de agressão?
A mente pressionada a quase intragável exaustão,
Nas esquinas, os chacais esbugalham seus olhos em alerta.


Oh, Baal! Quantos se embriagam nas bordas do seu cálice?
Quantos grãos de areia deslizarão entre os dedos?
O abrigo provisório no interior do grande vazio,
A cabeça buscando se aprumar diante do maremoto.


Transcorre a lâmina impiedosa e crua dos ponteiros,
Injúria e escárnio: a hora que nunca chega,
É a mesma hora que nunca parte,
O passivo imobilismo toma conta de todo o lugar.


A guerra travada diante das agruras do espelho,
A incerteza presente diante do vôo cego dos arcanjos,
Quanto Mal é fantasiado de sorridentes querubins?
Quantas são as faces de Gehenna?


Quebrem meus ossos e estilhacem meus dentes,
Cortem a carne conforme as profanas veleidades de Asmodeu,
Mas nada poderá extinguir a fonte da Grande Luz do firmamento,
Pois a vontade de reinar será a vitória a ser erguida com o mesmo ímpeto.


Nenhuma injustiça poderá prevalecer para a eternidade,
Aos que doam seus corpos em troca da parca sobrevivência,
Haverão de ser erguer contra a tirania subliminar dos dominadores,
E o alimento será ofertado indistintamente à todos neste globo.


Com o corpo fechado e os olhos cerrados,
Com os lábios lacrados e as costas ungidas a espinhos,
Cedo ou tarde os punhos serão libertos do cativeiro,
E ainda o Amor haverá de superar a epifania das trevas.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Entre Muros


Era noite e o silêncio planava no ar,
Calada, ela se encontrava sentada na calçada,
Olhar fixo e absorto perante o mundo,
Buscou aproximar suas pernas a fim de se aquecer.


Não havia ninguém à volta,
Ninguém que pudesse acolhê-la,
Ninguém que trocasse meras duas palavras,
Ninguém ao menos para enxergar a sua existência.


Começava a chover com grande vilania,
Ventos impiedosos açoitavam o seu rosto,
As lágrimas mesclavam-se com tanta água,
A dor se fazia tinir e a zunir cada vez mais.


Um intenso frio adentrava a sua alma,
A espinha mal sustentava o seu corpo,
As contrações latejavam nas paredes do ventre,
Não havia uma viva alma ao seu redor.


O mundo nunca significou-lhe muita coisa,
Sentia-se esquecida e aviltada por todos,
Renegada pelo que acreditava no amor,
E lá permanecia estática diante de tudo.


O que fazer quando tudo parece está perdido?
Ausência de sentimento e a boca seca de temor,
O sangue contínuo escorrendo entre as pernas,
Além da chuva que encharcava suas vestimentas.


Olhando para o lado, aquela coisa expelida e inerte,
Sem sinal de vida e sendo um mero fardo de ódio,
O significado de sua vida cair em xenofobia e malogro,
Nada foi pedido e aquilo apenas representou a sua ruína.


Ela moveu lentamente aquele corpo,
A coisa se mantinha fria e silenciada,
Aquilo ainda fazia ruído em sua cabeça,
Cadê Deus? Melhor assim, melhor assim...


Não! Nada foi pedido...
De fato, ela nunca o quis,
Tanta agonia por aquilo tudo,
Agora, finalmente ela estava livre... Alívio?


No meio da cidade cercada por muros de indiferença,
Num canto imundo, escuro e sobre um céu que desabava,
Na mais silenciosa das noites e para alívio de todos,
Unidos por um cordão, enfim jaziam ela e seu filho.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Labirintite


Um dia acreditamos que tudo poderá ser possível,
Num universo de grande contentamento,
Acreditamos na eternidade como o semblante de um sorriso de criança,
Que nada poderia estragar qualquer momento.


Tal como as nuvens num incerto céu de tonalidade cinza,
O que era azul-anil se ruborizou,
Até esmaecer num oceano turvo e enegrecido,
Para tanta expectativa, um desânimo latente.


Transcorrendo a rotina plástica dos dias,
Crescer, procriar, vegetar e sucumbir,
Na qualidade de animais pretensamente racionais,
Devastamos, sangramos e nos autocondenamos.


Nossas frustrações são cúmplices da ansiedade,
A história de liberdade sucumbe ao comodismo,
A futilidade reinante absoluta nas esquinas,
Somos aparência, veleidade e arrogância.


O encarceramento do passado,
As condições impostas pelos temores,
Nos bares tantos risos alucinógenos,
Os atalhos desmedidos da fuga de si.


Um dia a criança sorri,
Noutro dia ela passa fome,
Em favelas, becos e guetos imundos,
O outro se revela nas velhas páginas de jornal.


Acumulamos bens e tantas outras quinquilharias,
Materializamos todas as nossas emoções vazias,
Racionalizamos o amor, a volúpia e a insanidade,
Quem sobrevive ao caos humano?


Narinas recheadas de pó e almas fabricantes de fumaça,
Olhos brilhantes vagam pela noite eterna,
A revolução sexual entre vômitos e embriaguez,
Admirável mundo novo da liberdade sem arreio!


O cultivo mercantil em busca de uma patética juventude,
Vovô e vovó num alucinado ritmo à hip-hop,
Rupturas narcíseas, brigas inúteis e samba-solidão,
E ainda há os que só querem saber de culpar os porcos!


A fé é um comércio espúrio de liturgias baratas,
Cafetões de Deus promovem a orgia dionisíaca do dinheiro de desesperados,
Clérigos trocando as Escrituras por qualquer rede pedófila,
Se nem Cristo salva: clamamos máscara, lenço e concordata!

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Águas de Inverno (Dias Insalubres)


A chuva que se fragmenta no céu,

Desaba sem piedade sobre os ombros,

Encharca todas as vestes impunemente,

Resta então um corpo frio e desconsolado.



A chuva que inunda a cidade,

Desliza granizo sobre o alumínio da janela,

Numa artilharia semelhante aos tempos de guerra,

Ao que remete à guerrilha cognitiva de cada dia.



A chuva espalha seus sequiosos caprichos,

Inunda sarjetas e transforma calçadas em rios,

Arrasta tudo o que encara pela frente,

Abate a todos com severidade.



A chuva que precipita sobre nossas cabeças,

Afoga coragem e afaga temores,

Emana sobre bueiros tanta sujeira,

A cidade de impurezas e olhos atormentados.



A chuva que invoca demônios,

Leva-nos ao lar de Gehenna,

A angústia da desolação e incompletude,

A cadeia de acontecimentos profanos e arcaicos.



A chuva que abraça a solidão,

Na atmosfera rarefeita da hostilidade cotidiana,

O conflito presente imerso no inconsciente,

A aspereza dos dias selvagens e insalubres.



A chuva que canta num dia cinza,

Nublado de trevas e silêncio,

A janela fechada sem saída,

O abajur enfeitando a sala sem iluminação.



A chuva indiferente e salobra,

Calada sem compaixão imediata,

Rica de fel, cancro e veneno,

Escorrendo pelos poros das almas em tormenta.



A chuva de águas turvas,

Destila mentiras prosaicas dos opressores,

Que cala anulando os corpos lacrados,

Quem grita a esmo é acorrentado à fogueira.



A chuva que corre como sinos do último aviso,

O Paraíso que fecha suas severas portas de fim da colheita,

Tantas almas desabrigadas à espera da inútil salvação,

Tanta água esbanjada que não purifica a todos.


segunda-feira, 13 de julho de 2009

Vaticínios (Verdades Alternativas)


A mentira possui pernas pequenas e mancas,
Tão curtas como o salário no final do mês,
Lograr o outro com verdades fictícias,
Empurrar com tanta voracidade para dentro do alçapão.


A atmosfera cinzenta emplaca um indigesto frio,
Pela fresta da janela invade uma corrente rigorosa de ventania,
Ninguém sabe exatamente quem fala a verdade entre os homens,
A cegueira dos olhos ou a estupidez do coração.


No jogo das mentiras mal arquitetadas,
Tantos esforços para promoção do desapego,
Mentiras aliadas para dentro de uma cesta de enfermidades,
A ingratidão presente que sublima qualquer nostalgia.


Tantas mentiras são colocadas em pequenos potes de veneno,
Preenchidos à exaustão até as bordas e, posteriormente, lacrados,
Dispersados rotineiramente em lugares estratégicos,
Projetados para o desencadeamento do maior mal possível.


Muitas vezes, as mentiras são ingênuas,
Pequenas imperfeições do cotidiano de mesmices,
Servem para justificar ou minimizar tamanha mediocridade,
Tão intensa quanto a porosidade do caráter.


Mentiras são soerguidas em um mundo paralelo,
Onde a verdade é apenas um inútil ornamento de bolo,
Os fatos são criações anônimas dos pensamentos,
Compactua-se no que seja confortavelmente acreditar.


Tantas mentiras contadas para si mesmo,
Tantas elaborações fadadas ao fracasso,
A angústia que assola a racionalidade perdida,
A viagem hostil às catacumbas da memória.


As mentiras são janelas travadas,
Não permitem que nada circule livremente,
A atmosfera pulverizando grãos da areia,
Tantas mentiras espalhadas pelos corredores.


O Amor também seria outra forma de mentira?
Tanto assim seria um exagero afirmar tal sentença,
Mentiras são mais pétreas, desesperadas ou ardilosas,
A Paixão é apenas um delimitado estado de espírito.


Mente quem nunca mentiu,
Mente mais ainda quem sempre logra a si mesmo,
Porém quem se preocupar cultivar racionalmente tanta veracidade,
Estará fadado aos labirintos solitários de algum apodrecido manicômio.